sexta-feira, abril 29, 2005

CD - Biografia do Fado de Coimbra
(Texto incluído no caderno que acompanha o CD)

Breve sumário de um certo encantamento

À semelhança do que se diz do Direito Romano, também o Fado de Coimbra começou por não ser. Certo que desde sempre, particularmente desde meados do século XIX, os estudantes que deambulavam pelo velho burgo coimbrão, libertos da sonolenta leitura das apostilas ou das filiais sebentas, iam arrancando à viola toeira, no alinhamento paralelo dos arames, pungentes trinados que sublinhavam canções em voga. Os gorgeios e os trinados não deixariam de ter destinatárias, mas não era ainda a deambulação nocturna para afirmação de amores sob janelas suspensas de mistérios. Não chegara ainda o tempo dessa forma de folclore urbano que a gosto ou a contragosto de estudiosos se consagrou como Fado de Coimbra, para exaltantes promessas de amor em noitres enluaradas.
Quer a matriz viesse nas arcas encoiradas dos estudantes brasileiros, quer conformasse nostálgicas recordações dos lisboetas que rumavam a cidade mondeguina, quer assumisse tintagens de medievalesco trovar por vínculo transcultural, se não conflituarmos a estrutura tonal do fado com a modal do cancioneiro medievo, morre nas discussões académicas o rigor das origens e apenas se pode certificar que espraiava o ultra-romantismo os seus ais no destilar sofrido dos corações, corria a década oitocentista de setenta, quando a guitarra soltou os primeiros gemidos nas margens do Mondego e com ela talvez o balbuciar das ancestrais manifestações geradoras do fado coimbrão.
Com o aparecimento da guitarra alongava-se em esforço de definição uma estrutura melódica que não clivava ainda com a tradicional melopeia do batido fado lisboeta.Um ou outro escolar ensaiaria uma estrutura mais erudita, do lied ou da sonata, mas seria em híbridas e ao mesmo tempo lineares formas de comunicação de um certo tipo de sentimentalidade amorosa que os rapazes da academia derimiam em noites de boémia as tristezas que sempre escorrem das horas mortas.
A música coimbrã inicia desde então o ciclo metamorfósico. Com fumos de elitismo, recusam alguns a designação Fado de Coimbra, preferindo-lhe Canção de Coimbra, ou mesmo, pela sua textura mensageira, Serenata Coimbrã, como enuncia o musicólogo Francisco Faria. Luiz Goes sustenta que o que marca a diferença, o que a singulariza no confronto com outras formas, é a interpretação, essa sim, vinculada à vivência coimbrã.
Talvez tenha sido essa vivência que marcou a passagem de Augusto Hilário, a quem Pascoaes chamou o Pontífice Máximo da Boémia. O jovem viseense, aspirante a João Semana, preferiu a guitarra e a serenata à artes de facultativo, arrancando ais prolongados que traziam “à janela as meninas de Coimbra e fazia delirar as tricanas gentis”, como recorda o sábio Egas Moniz em A nossa casa, ao desfiar os verdes anos.
Viver Coimbra era madrugar numa temporalidade de paixões impossíveis, evidenciar no canto os males de amor e a sacralização da amada. Melodia simples, quadras de sete sílabas, pendor melancólico, decadente, com a morte a sobrevoar a dominância temática. Assim versejava Hilário e assim vertia para o canto, com a acanhada guitarra sobre os joelhos, esguio e olheirento, a insinuar paixões nos ais intermináveis, percutidos nos suspiros das donzelas.
Memorável a sua passagem pelo Teatro D. Maria II, nos idos de Março de 1895, em sarau de homenagem a João de Deus. Nessa noite, pôs ao rubro a plateia com “os seus famosos fados de estilo original e a sua linda voz”, como regista nas memórias o actor Chaby Pinheiro.
Hilário é a primeira referência individual do fado-serenata. Pelas ruas do velho burgo coimbrão, em noite de festa, os estudantes agrupavam instrumentos e cantares, mas não encontramos notícia de um trovador singular. Em 1880, quando das comemorações camonianas, a academia celebrou com uma serenata, de que se fez eco O Conimbricense. Mas serenata com uma estudantina, com descantes à mistura.
Moço ainda, aos 32 anos, a 3 de Abril de 1896, Hilário morre em Viseu, pagando nas fragilidades do corpo as prodigalidades da alma, lançando nas asas do tempop as sementes do mito. Virado o século, o mito corporiza-se nas entoações do Fado Hilário, maioridade interpretativa de todo o cantor coimbrão que se preze.
As estudantinas multiplicam-se. Destaca-se a voz de Avelino Baptista, mas logo outros nomes, novas vozes, algumas a poderem chegar a nós em registos fonográficos. Manassés de Lacerda distingue-se então entre quantos na Lusa Atenas fazem da noite refúgio para entoações românticas. Com ele se vai cruzar Alexandre de Resende, brasileiro que nunca frequentou a Universidade mas se vinculou como autor e intérprete, sendo dele o célebre Fado do Meu Menino, que às vezes circula com outras paternidades, menino d’oiro a ser levado ao céu, enquanto pequenino, para com os anjos aprender a arte de cantar.
Tomam corpo as composições com duas quadras de sete sílabas, geralmente não relacionadas no assunto, precedidas duma breve introdução da guitarra, com os tons dominantes da melodia, e a funcionar depois como separador das quadras, modelo que persiste praticamente até aos nossos dias.
Abeira-se o tempo de António Menano, voz romântica que ecoou em todo o país nas velhas grafonolas, cantando o Passarinho da Ribeira, o Solitário, a Carta da Aldeia, a Carta de Longe, o Fado do Alentejo, entre dezenas de composições, acompanhado por seus irmãos Francisco, Alberto e Paulo, em guitarra e viola, mas se notabilizou igualmente em famosas canções acompanhado ao piano. Os discos do Menano, dono de “uma voz excepcional, de uma suavidade e um encanto únicos, clara, límpida, de um excepcional valor mesmo nos pianíssimos ...”, são apreciados em todo o mundo, ganham especial relevo no Brasil e nas antigas colónias portuguesas de África. António Menano fez escola, era o próprio Fado de Coimbra, suave e romântico, nos temas e na dolência do canto. Pela mesma época, outros nomes deixaram rasto nas ruas da velha Alta, pela maviosidade do seu canto: Roseiro Boavida, Agostinho Fontes, Alexandre de Resende ...
Porém, é com Edmundo de Bettencourt que a canção coimbrã ganha outra expressão, outra espessura. Na música e nas palavras. O poeta fundador da Presença, o notável precursor de Poemas-Surdos, somava à criação poética uma voz poderosa e uma brutal, em sentido telúrico, capacidade interpretativa, que vão encontrar na guitarra de Artur Paredes os pilares de radical mudança.
Temos por adquirido que o que definitivamente distingue o Fado de Coimbra de outras formas musicais urbanas é a nova maneira de afinar a guitarra e de a tocar que Paredes introduziu. Com ele morre o trinado à guisa de bandolim, corda a corda, substituído pela organização de acordes comprometendo uma nova utilização da mão esquerda. Mais que sublinhar a melodia cantada, a guitarra ganha identidade e cresce no tempo a definir melodias outras, personalizada e vigorosa.
Bettencourt vai colher nas raízes populares cantares que transforma em “gritos de cristal e oiro”, como fixou Régio. Paredes cedo descobre que era preciso mudar a anatomia da guitarra para encorpar o som. Alarga a escala, eleva o nível dos pontos, aumenta a altura das ilhargas, “no objectivo de uma maior pureza de notas, isoladas ou em associação,e de uma necessária ampliação do campo de ressonância” (Afonso de Sousa), para uma estruturada organização harmónica.
Ai choro com que o Paredes / As mãos dobradas em garra / Esfrangalhava a guitarra / Punha os bordões a estalar (Régio).
Os discos que Bettencourt gravou passaram a ser peças de referência para várias gerações, como viagem obrigatória de quem ruma a Coimbra passaram a ser as variações de Artur Paredes. Zeca Afonso, filho de um condiscípulo de Bettencourt, considera-o “o maior cantor de fados de todos os tempos”, Afonso de Sousa, que privou como guitarrista e poeta com essa geração, exalta a sua importância como renovador que esquceu “cânones tradicionais, consagrou um novo estilo, arejando um ambiente artístico já muito recapitulado e, por assim dizer, monocórdico”.
Aos anos vinte é comum chamar de Década de Oiro. Edmundo de Bettencourt, Lucas Junot, Paradela de Oliveira, Armando Goes e Artur Paredes legaram-nos um património de rara qualidade, marcaram uma época mas, acima de tudo, pelas diferenças de timbre vocálico e pela sensibilidade interpretativa, pela tessitura harmónica como pelo vazar em novos moldes poéticos, da redondilha ao soneto, vestiram a música coimbrã de novas roupagens que a tornaram reconhecível e apetecida, a que um novo ciclo epigonal segue o rasto com Serrano Baptista, Lacerda e Megre, Felisberto Passos e Xabregas no canto e na guitarra.
Para os anos cinquenta estava reservado o segundo momento alto, se bem que não devamos esquecer nomes como Julião, Napoleão Amorim, Almeida Santos, José Amaral, Anarolino Fernandes, Augusto Camacho, Florêncio de Carvalho, Tavares de Melo, Ângelo de Araújo e Carlos Figueiredo, na década anterior. A poética procura com nova sintaxe a temática dos olhos e olhar, do oiro dos cabelos, ondas do mar e ciúmes divinos ante a beleza da amada, a sempre presente sacralização da Mãe, quadras sustentadas pela leveza da estrutura melódica.
Dessa geração, é imperativo destacar essoutro grande inventor de sonoridades, João Bagão, quando já em Lisboa constroi algumas espantosas composições sobre poemas de Leonel Neves, de Edmundo de Bettencourt e de Luiz Goes, destinadas ao império vocal deste último.
A década de meados do século XX trouxe à música coimbrã uma outra luz. Pela poética como pela estruturação musical, ensaiam-se novas formas, retomam-se temas populares, redefine-se a balada. Com Luiz Goes, para nós o maior de quantos passaram por Coimbra, não só pela sua fabulosa voz de barítono como pelo virtuosismo interpretativo, a música de inspiração coimbrã atinge uma outra força, universaliza-se. As suas gravações do Coimbra Quintet soam a revolução. Com ele, Machado Soares, José Afonso, Fernando Rolim, Sutil Roque e alguns mais, imprime-se um novo impulso no gosto e na difusão da música de Coimbra.
Pela mesma época, igualmente comprometidos na procura de novos caminhos, emergem músicos de qualidade como António Brojo, António Portugal, Jorge Godinho, Manuel Pepe, Levi Baptista e logo outro notável compositor e intérprete, Jorge Tuna, guitarrista de exemplar rigor, sensibilidade e vigor criativo, que encontrou na viola de Durval Moreirinhas a necessária complementaridade.
Partindo de sonoridades coimbrãs, marcada pelo sopro do génio, a guitarra de Carlos Paredes, último de uma dinastia de grande criatividade, na composição e na execução, iniciada com seu avô Gonçalo Paredes, continuada na revolução operada por seu pai, Artur Paredes, exponencializada enfim nas mãos insuperáveis de Carlos, que conferiu à guitarra o reconhecimento de uma outra dignidade.
Da década de sessenta, naturalmente as vozes de Alfredo Correia, Luís Marinho, Adriano Correia de Oliveira e António Bernardino, as guitarras de Andias e dos Melos, o sempre presente Durval na viola e as palavras de Manuel Alegre. Sob o magistério de José Afonso e do primado da viola de Rui Pato, ressalta então um canto social e politicamente interventor (de alguma maneira antecipado por Luiz Goes), comprometimento cívico que busca novos e auspiciosos caminhos, em trovas e baladas. A música perde as colorações coimbrãs, porque visa outros espaços de sociabilidade, é de outra esfera,embora não perca uma vinculação ao gosto interpretativo coimbrão.
Elencar, para todas as épocas, nomes, composições, estilos, não cabia na modéstia desta nota, breve sumário da história desse tocante veículo de comunicação de sentimentos e emoções, carregado de símbolos e mitos, sempre revisitado e a exalar frescura, contra o tempo e os silêncios, que é a música da cidade do Mondego. Não lhe caem os parentes na lama se chamarmos fado a muitas das suas formas cantadas, que assim têm caminhado e são reconhecidas...
De Coimbra fica sempre a inspiração e a mistificação de nomes e lugares. Ao deslumbramento da chegada, segue-se a exaltante vivência, que é convivência, e mais encanto na hora da despedida, maneira de falar da sua permanência, recordação teimosa em quem lá viveu os verdes anos.
Neste disco poderá certamente encontrar-se dos mais significativos momentos desse universo musical, na variedade das suas múltiplas formas de expressão. Ao ouvi-lo, a possibilidade de participar desse mais encanto, vivido ou imaginado, presente numa antologia que guarda um século de amor e de saudade, a par com o sabor das coisas populares e de renovados sentires.
Para quem sabe descobrir nas harmonias e na substância poética que se eleva das palavras o fundo mistério de Coimbra, um não sei quê que faz com que chegue a ter saudades dela, quem nela nunca viveu...

José Henrique Dias


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