sábado, abril 30, 2005

Divaldo Gaspar de Freitas (1912-2003). Um pioneiro na produção de estudos sobre a História da Canção de Coimbra

Divaldo Gaspar de Freitas, filho do comerciante português António Gaspar de Freitas, e de Clara Vollet, nasceu em São Carlos, Brasil, em 20 de Setembro de 1912. Passou a meninice a brincar na loja paterna, cuja tabuleta anunciava “O Rei dos Barateiros”. Ainda criança, a família foi estabelecer-se em São Paulo, na Rua Cincinato Braga, cidade onde Divaldo fez o ensino primário no Grupo Escolar Rodrigues Alves, à Avenida Paulista. Na fase de transição da escola primária para o Liceu, a família Freitas fixou domicílio em Cantanhede, nos arredores de Coimbra. Divaldo de Freitas passou a frequentar o Liceu de Coimbra, donde transitou para a Faculdade de Medicina da UC, cujo urso terminou em 1938. A Divaldo de Freitas deve a Academia de Coimbra a divulgação do famoso “grito académico”, FRA… Em 1937 passou por Coimbra uma delegação de estudantes brasileiros, em grande parte aboletada na República dos Kágados, que divulgou um antigo grito brasileiro, conjugado com uma sigla codificada contra o regime de Getúlio Vargas (1883-1954). Vargas chegara à presidência da república em 1934, tendo instaurado o “Estado Novo” pelo golpe de 10/11/1937. Divaldo aprendeu o grito, parece que o lançou com alguma frequência nos jogos do clube de futebol de Cantanhede e finalmente, na noite de 26 de Maio de 1938, ensaiou os quintanistas de Medicina e lá se gritou furiosamente o FRA (=Frente Republicana Académica Anti-Jetúlio Vargas!) no Jardim Botânico da UC. No dia seguinte, 27 de Maio, todos os cursos presentes na Queima das Fitas berravam o FRA a plenos pulmões. E dos cursos saltou para as gargantas dos apoiantes da Académica (equipa de futebol), com um percurso imparável pelos liceus continentais e ultramarinos, magistérios primários, Universidade do Porto, alastrando já depois de 1974 a todas as escolas públicas e privadas de ensino superior, quartéis, escuteiros, campistas…
Já agora, o que Divaldo gritou com os seus colegas foi:

Solo: Então Malta, e pelos quintanistas de Medicina, não vai nada, nada, nada?
Coro: Tudo!
Solo: Nada, mesmo nada, nada, nada?
Coro: Tudo!
Solo: Então, com toda a pujança, toda a cagança, e todo o espírito académico, FRA (efe, erre, ah, ditas as letras com grandes prolongamentos)
Coro: Ah!
Solo: FRE (efe, erre, eh)
Coro: Eh!
Solo: FRI (efe, erre, ih)
Coro: Ih!
Solo: FRU (efe, erre, uh)
Coro: Uh
Todos: Frá, Fré, Fri, Fró, Fru, Alêguá-Guá-Guá, Alêguá-Guá-Guá, Chi-Ri-Bi-Bi, Tá-Tá-Tá-Tá, Hurrá-Hurrá!

Após a formatura regressou ao Brasil, tendo casado em 1941 com Adelaide Fortunato, uma conterrânea que conhecera em Coimbra por 1936.
Iniciou a sua actividade profissional como regente da cadeira de Medicina Legal em São Paulo e trabalhou como médico na Beneficiência Portuguesa. Em 1942 estreou-se no ramo farmacêutico, como Director Secretário do Laboratório Clímax S/A, cargo que manteve até 1974. Estudou longamente a História da Medicina, tendo escrito centenas de trabalhos para revistas, jornais, conferências, congressos e cursos, e participou em diversos encontros científicos da especialidade no Brasil e no estrangeiro. Investigou paralelamente temas da História de Portugal e da História do Brasil, destacando-se a premiada “A vida e as obras de Bartolomeu Lourenço de Gusmão” (1967). Divaldo foi membro de inúmeras instituições culturais e científicas. Embora não tenha exercido carreira universitária, chegou a orientar várias teses de doutoramento e participou em júris doutorais.
Coleccionador insaciável de livros, e também de discos, Divaldo de Freitas acabaria por doar o grosso dos seus livros às instituições universitárias de São Paulo. Ao Museu Académico de Coimbra remeteu por mala diplomática nos inícios da década de 1990 umas 40 caixas contendo cartas, livros, documentos diversos e dezenas de antigos discos de 48 rotações.
A Divaldo se ficaram a dever as mais calorosas recepções que os organismos teatrais e corais da Academia de Coimbra receberam no Brasil, cabendo rememorar as digressões do TEUC (1949) e do Orfeon (1954). Na década de 1950 ajudou a fundar uma delegação da Associação dos Antigos Estudantes de Coimbra em São Paulo, de que foi incansável dinamizador. Veio a Portugal por diversas vezes na década de 1960, com derradeira visita à sua amada Sião em 1988. Nos alvores da década de 1960 iniciou a recolha de certidões, fotografias, partituras e variados informes com vista ao levantamento das biografias e discografias dos muitos agentes da CC que iam desaparecendo. Um dos seus grandes colaboradores em Portugal foi o Dr. Afonso de Sousa. Esteve intimamente ligado às homenagens a Hilário, Lucas Junot e Manassés. Um breve resumo das suas pesquisas veio a lume em 1972 na muito sentimental mas preciosa obra “Emudecem Rouxinóis do Mondego”. Tendo começado por defender as origens hilarianas da CC, Divaldo deixou falar a sua costela de investigador e em Julho de 1988 proferiu no Arquivo da UC uma notável conferência onde demonstrou que Hilário não poderia ter cantado o Fado Hilário Moderno, mas sim o Fado Serenata do Hilário. Numa conjuntura em que facilmente poderia ser acusado de “fascista”, defendeu a continuidade da CC e invocou a necessidade de entender este género artístico como Património Cultural.
Ainda me correspondi com Divaldo de Freitas em 1989, mas sem continuidade. Os documentos ofertados ao Museu Académico dariam para sustentar uma bela tese de mestrado. Os velhos discos permitiriam lançar uma saborosa antologia em cd ou dvd. As fotografias dos antigos cultores, essas tenho-as visto em obras assinadas por António Brojo/António Portugal e também José Niza. O “Emudecem Rouxinóis…” merecia ser reeditado com notas críticas, inclusão de biografias que ficaram inéditas e documentação remanescente.
As minhas sentidas homenagens a esta figura da cultura e grande amigo da Canção de Coimbra que pode ser classificado sem rebuço de estudioso pioneiro.

Agradecimentos: ao Dr. Augusto Camacho Vieira e ao Dr. Fernando Freitas pelas boas pistas que me lançaram no encalço de Divaldo
(António M. Nunes, Abril de 2005)

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