sexta-feira, maio 20, 2005


Amanhecer de um método- Nova luz para a guitarra portuguesa

Por José Miguel Batista
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Tem sido tradição na Academia de Coimbra, em matérias que à Canção Coimbrã concernem, a transmissão oral de conhecimentos musicais, dos mais velhos e experientes aos mais novos e candidatos a cultores do Fado nas suas várias vertentes - cantado ou "apenas" tocado, em suas guitarras e violas. Assim se foram perpetuando conhecimentos ao longo dos tempos e por essa forma, digamos, artesanal, possibilitando aos jovens aprendizes desse "feitiço" que são o Fado e a Guitarra da urbe mondeguina, tornarem-se nos novos artistas e veiculadores duma arte que é única - de tal sorte transitando e perpetuando-os em seu caminho, de geração em geração.
E, se no plano vocal havia uma ou outra "escola", mormente através de grupos corais que na Academia pontificavam (maxime o Orfeon Académico, centenário e relevante, com peso inquestionável ou mesmo insubstituível neste domínio - alfobre de cantores, foram nele solistas e, daí, "chamados à Canção Coimbrã", nomes como Luiz Goes, Machado Soares, Fernando Rolim e José Afonso, entre muitos outros - regra cuja excepção, dentre os cantores ditos de maior nomeada e aqui evocados, terá sido, quàsi tão só, Adriano Correia de Oliveira) já no caso da Guitarra, quiçá porque de mais difícil execução e menos comum aprendizagem do que o referido canto - e a própria (sua irmã instrumental) viola - o testemunho era por via de regra passado "de viva voz", ou melhor (e, aqui, literalmente...) "dedo a dedo" - formando-se, quase exclusivamente por esta forma, os novos tocadores.
E era pois, assim: a vivência musical num amadorismo que, pode dizer-se, nem por ser servido, a mòr das vezes, por excelentes intérpretes e/ou criadores (e quantos houve, muito bons, e ainda há) o deixava de ser - amadorismo- na mais lídima e verdadeira acepção da palavra.

Excepções haveria, houve - decerto (e apenas a guitarristas me refiro, que não a instrumentistas de viola - ...é sobre os primeiros o "tema" aqui versado): Eduardo Melo e seu irmão Ernesto, Octávio Sérgio, António Andias, Hermínio Menino e Francisco Martins, mais recentemente Álvaro Aroso, possuidores de conhecimentos musicais já bem elaborados (alguns, mesmo, muito bem elaborados - o "caso" de Eduardo Melo é quiçà o mais paradigmático dos anos 60 de entre seus pares, conhecedores, diría músicos "avant, pendant et après la lettre" - "on y soit"...- e perdoem-se-me os galicismos) são exemplos de quem, na concepção e na interpretação da Guitarra de Coimbra, vão já muito além do "ofício artesanal" que porventura a outros não é outorgável - sendo-lhes permitido, por exemplo, se e quando e sempre que necessário, o ensino e aprendizagem (para si próprios, ou de si próprios para outrem) por pauta, i.e., leitura musical. E, aqui, enquanto tunos por exemplo, que também foram (da Tuna Académica- "irmã quase gémea" do Orfeon no peso específico que representam estes dois Organismos relativamente à música coimbrã de tantas gerações) podiam ser úteis, ou úteis mais rapidamente, porventura, do que outros, musicalmente menos "apetrechados", pela leitura e na interpretação, em benefício das "performances" individuais ou dos conjuntos onde se integrassem... (é outra verdade - que nem por menos conhecida, "histórica", ou se calhar por isso mesmo, deve deixar de assinalar-se).
Conhecimento(s), pois - virtude(s) nunca a desprezar !
Mas... foram a excepção (decerto com outros) - não a regra até "à data", até há "bem" pouco tempo, ainda - era outro o tempo, era outra também (pelo menos neste domínio específico) a cultura - musical vera.

Ora, no dealbar do milénio que se avizinha, duas coisas importa considerar: que a aprendizagem musical, seja instrumental seja de qualquer outra área artística com ela relacionada, pese embora a possibilidade de se continuarem a veicular conhecimentos por via tradicional, não deverá, em nome duma modernidade que vive o seu tempo próprio, confinar-se a esse tipo de "escola"; por outro lado, é mister que os novos conhecimentos sejam ministrados por forma e por quem, pelo seu talento, experiência e saberes (teórico e prático) não se cinjam mais e tão somente a um "amadorismo talentoso", antes se edifiquem e articulem em bases mais... científicas - tão certo ser a Música (logo a de Coimbra outrossim) Ciência e Arte a um tempo!

Num contexto como este, é de grande actualidade e indiscutível interesse a iniciativa que Paulo Soares - um dos mais brilhantes e eficazes (quem o conhece, sabe que assim é) intérpretes da sua geração - leva a efeito, a saber, a elaboração/criação/"dar à luz" dum Método de Guitarra - qual (como que) Escola onde, precisamente, os novos cultores possam ir beber, em bases certas, os conhecimentos que sirvam de forma segura os seus interesses e os da sua Música - seja como intérpretes ou promitentes criadores!
Método/Escola do seu tempo e para o seu tempo (e o de vindouros), pioneira e necessária, actual e quod futurum - a obra a que o Professor Paulo Soares mete ombros, num empenho e determinação que se aplaudem, assegurada a priori a sua actuante e indiscutível utilidade. Tratando-se aliás, no seu caso, de escolha consciente e maduramente pensada - resposta a apelo que a Arte dos Sons lhe dirige em opção que contrapõe a um passo apenas de licenciatura universitária em Engenharia - mais são de aplaudir, nesse contexto, as suas escolha e decisão, e augurar os exitos que este novo rumo (carreira como docente e artista a um tempo) lhe suscitará. Acrescendo ser A GUITARRA (a de Coimbra sobretudo?) um instrumento cuja especificidade não choca com a sua igualmente patente universalidade, eis um motivo mais de vero aplauso, a justificar o acerto do rumo, a pretender e reiterar os melhores augúrios para este jovem mas já experiente intérprete, amigo e mestre - Paulo Soares.
E, assim, que mais "querer"?
Que o novo (e pedagógico) MODELO possa fazer juz ao que se propõe: guia e cadinho de continuadores, tentativa de descoberta ou molde certo para jovens valores - eis os nossos votos. Que ao mérito e visão do seu autor se somem, a bem da MÚSICA sensu latu e em particular da que de COIMBRA emana, os novos talentos e seus êxitos futuros.
Como se quer - e assim se crê!

Nota (indissoluvelmente ligada ao texto supra):
José Miguel Baptista: médico/obstetra (o canto e a vida - criatividades cultivadas, verdades vividas); foi membro efectivo, enquanto estudante da Universidade de Coimbra, do Orfeon Académico, seu ensaiador de naipe, solista, cantor de grupo de Fados (com Raposo Marques e Joel Canhão - maestros); Tuna Académica, cantor/solista com orquestra (convite/sugestão de Tobias Cardoso) e da Canção Coimbrã; Coro do Conservatório e, mais tarde, Choral Poliphonico de Coimbra (com José Firmino); co-fundador da Associação dos Antigos Orfeonistas (sigla AAOO) tem aí mantido funções similares às prè-citadas, coralista-ensaiador-solista-grupo de Fados (de novo com Joel Canhão, depois Francisco Faria, actualmente com Augusto Mesquita). Ligado a um dos movimentos renovadores da Canção Coimbrã dos anos 60, com Eduardo e Ernesto de Melo, A. Andias e Durval Moreirinhas - "Quarteto de Coimbra"- (mormente pela concretização de novas linhas harmónicas após a 2ª "década de oiro" - anos 50 - e, então - anos 60 - a par da chamada canção social/de intervenção - Portugal, Brojo, Afonso, Adriano, Bernardino), integra, desde 1974, a "Tertúlia do Fado de Coimbra" - sendo instrumentistas Álvaro e Eduardo Aroso, J. Carlos Teixeira, Mário J. Castro e José Paulo. No Grupo de Fados actual dos Antigos Orfeonistas tem por privilégio a companhia instrumental de Octávio Sérgio, e bem assim de Manuel Mora, Carlos Caiado e Custódio Moreirinhas. Privou e admira o próprio Paulo Soares desde viagem com os mesmos AAOO ao Brasil, 1990 - conquanto suas virtualidade e amizade fossem já por si previamente intuidas...
É pois nessa qualidade - com todos os seus companheiros, os que nomeia e a quem, por impossibilidade formal presente, aqui não cita - como agente/representante artístico da sua Academia, Cidade e País, que, "cantando", tem ajudado a "espalhar por toda a parte" a Música, coral e instrumental clássica (ou assim denominada) e a que, em Tradição e Cultura, mais representativa se eleva e é evocadora das raízes - o Fado e a Guitarra de Coimbra (quatro décadas, quatro continentes - excepção é, até ver, a antípoda Oceania... - cerca de 30 países, um milhar, ou mais além, de espectáculos, concertos e serenatas, ao vivo e/ou radiofónicos/televisivos) são acervo de memória, em permanência gratificante. Permite-se evocar, a este título, duas ou três "imagens" que releva: serenata em Veneza (indelevelmente marcada, tocante sensibilidade intemporal), 1ª viagem com o Orfeon Académico aos EUA em 1962 (37 espectáculos, 50 dias, culminados no "Lincoln Center" em Nova York. - numa época em que "isso era impossível" - na quantidade e qualidade assinaláveis), EXPO 70 no Japão (com Carlos Paredes, Amália Rodrigues, Ouro Negro e não só...), concertos no Vaticano e ONU... Marcante outrossim (a par de restante discografia que deixou com a maioria dos grupos e Organismos a que foi chamado a colaborar - excepção à sua época estudantil: a Tuna Académica...) a última gravação, com os AAOO: CD "Em Cantos", Junho 95, gravado (solos) nos celebrados "Abbey Road Studios", com a (também "impossível”-!?-) Orquestra Filarmónica de Londres - um espelho mais da universalidade da Canção Coimbrã, manancial poético e melódico que se renova.... E se tanto (ou tal) aqui fica referenciado, se deve tão sòmente a que "a viagem" (Representatividade, Arte, Vida) não é jamais de "um" (ou de alguém) "só" - abarcando tal "jornada" todos quantos, mais ou menos, melhor ou pontualmente menos bem, estão unidos na Construcção desta Arte que os sobreleva - e que ousam servir...E se já chegara a vez, e chega agora a nova via - eis porque a PAULO SOARES, tais testemumhos, aqui e assim deixados, jamais sonegaria...
Aí estão!
Amanhece - de novo - em Coimbra!

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