quinta-feira, junho 23, 2005

Na Galáxia Sonora: Sobre o Fado de Coimbra

Por Vera Lúcia Vouga(*)


À memória de Celso Cunha, meu Mestre,

e também à de
Luís Vouga (a quem devo a fundadora revelação de música prática, no piano familiar, dos vinte primeiros anos da minha vida)

e de
Armando Carvalho Homem (a quem devo outra revelação de música prática, na guitarra coimbrã, dos vinte anos que se seguiram)

«Quase todos os problemas que apresenta a versificação portuguesa através dos oito séculos da sua história estão por aclarar. (...) Para isso, necessário se torna pesquisar, também (...) um sem número de fenómenos aparentemente insignificantes mas, na verdade, de alta relevância, pois que incidem sobre o suporte fônico, modificam a própria estrutura da massa sonora ritmada, que é o verso.
Celso Cunha

«Coimbra terra de encanto
Fundo mistério é o seu
Chega a ter saudades dela
Quem nunca nela viveu.»
Anónimo

«Tout rapport à une voix est forcément amoureux»
Roland Barthes


Muitos encontros são difíceis de datar. Aquele de que escolhi escrever, demorando sobre ele um olhar mais atento, é por certo caminho onde se cruzam acasos variados, circunstâncias irrepetíveis, «o esforço insidioso da biografia»[1]. Esse olhar demorado, concreto, mais não é do que a procura de uma resposta a uma pergunta de há muito aflorada. Olhar, antes de mais, alongando-se no que os outros ouviram, olharam.
Globalmente considerado, esse jogo de múltiplos olhares é constituído em parte fundamental pela bibliografia existente, disponível: relativamente abundante mas, sobretudo no que respeita a Coimbra, de cunho muitas vezes memorialista[2]. Ainda assim, preciosa. A outra parte do conjunto será formada por depoimentos pessoais (não publicados), performances e gravações[3]. Aqui tocamos documentos de passagem, alguns ouvidos há muito tempo, literalmente irrepetíveis, com a sensação do muito que, mesmo já na era dos programas radiofónicos difundidos em directo, não ficou registado senão na memória dos ouvintes. O objecto define-se, num certo sentido, a este nível, como algo que pode estar a chegar ao fim; do qual, em todo o caso, muito se perdeu, sobretudo para alguém que não tem dele senão uma experiência tardia, marginal, externa, escandalosamente inaceitável à luz da «ortodoxia» da vivência coimbrã. No entanto, talvez essa heterodoxia tenha a vantagem de permitir entrever o fenómeno não exaustivamente, mas como um todo em transformação, sem cair no logro bastante habitual de instaurar o fado de alguma (quase sempre a sua) geração, por sinédoque, como o fado de Coimbra.
No conjunto de olhares evocados, conforme a perspectiva, assim o objecto escolhido é preferentemente designado por «Fado de Coimbra[4], «serenata Coimbrã»[5] «Fado-Canção» ou «Canção de Coimbra»[6]. Analisando atentamente essa questão optei, não sem hesitações, pela primeira designação, que se prende, relativamente ao fado de Lisboa, com o problema de uma origem em parte comum. Fado de Lisboa e Fado de Coimbra apresentam-se a uma análise global como duas galáxias de formação recente e em transformação muito clara, embora segundo ritmos e modelos variáveis, mesmo divergentes. Aliás, forma, como lembra Zumthor, equivale a força[7].
O Fado de Lisboa propriamente dito, o mais antigo, não parece remontar a antes do início do séc. XIX. É um produto tipicamente urbano, de origem afro-brasileira, surgido nos bairros populares, em ambientes de «bas-fonds». Pensa-se que descenda do lundum, já referido por Nicolau Tolentino na sátira «A Funcção» como «o doce londum chorado»[8]; dança trazida para Portugal pelos negros do Congo, já popular no século XVI, era considerada pela sociedade portuguesa sensual e obscena. Mesmo depois de já não ser dançado com os requebros que incluíam, por exemplo, a célebre «umbigada», o lundum foi adoptado como composição cantada, nos salões do século XIX, figurando em álbuns para canto como o Cancioneiro de Músicas Populares para canto e piano de César das Neves[9]. Do fado, segundo recentes pesquisas, há variados testemunhos no Brasil como composição coreográfica, anteriores à chegada a Portugal.
Não se sabe bem como a guitarra lhe foi associada. Descendendo do cistre medieval, ela foi instrumento de salão ao longo do século XVIII, chegando ao Porto, na sua forma moderna, como importação de Inglaterra e sendo por isso mesmo designada como guitarra inglesa[10]. Assim é referida no anúncio de um recital publicado num jornal da época[11] bem como no primeiro método de guitarra editado em Portugal, da autoria de António de Silva Leite, mestre de capela da Sé do Porto[12]. Mas se foi associada de uma maneira tão definitiva à forma emergente do fado (inicialmente dançado, ao que indicam vários testemunhos e a expressão remanescente «bater um fado»), foi porque o seu ethos plangente se adaptava bem a essas primeiras composições cantadas, de linha melódica simples, geralmente em compasso binário e em tom menor, com síncopa no segundo tempo[13], dando corpo a um poema narrativo literariamente pobre que contava, em mote e glosas em décimas, um rico rol de acções e desgraças. Neste fluxo movente, as modificações cedo foram tão evidentes que delas assim se queixava certo autor anónimo:

«Ai fado que foste fado
Ai fado que já não és
Ai fado que estás mudado
Da cabeça até ao pés.»[14]

De qualquer modo, é possível distinguir fases globalmente muito nítidas nesta evolução[15]: uma primeira, de fado vadio, marginal e marginalizado, ligado a referências históricas cedo transformadas em mitos como a Severa, o Conde de Vimioso, etc.; numa situação de menor marginalidade, o fado subindo ao palco, por exemplo, integrado em revistas. Mais recentemente ainda, musicando muitas vezes poemas de poetas consagrados na República das Letras como José Régio, Pedro Homem de Melo ou David Mourão Ferreira.
No que respeita a Coimbra, há testemunhos que indicam que, no século XIX, fados de Lisboa, levados por estudantes da capital, aí terão sido cantados, incluídos em récitas universitárias. Diamantino Calisto, em Costumes Académicos de Antanho, diz ter saído de um sarau «levando ainda nos ouvidos as últimas notas plangentes do fado da Severa na guitarra de Pires de Lima»[16]. Coimbra era, na época, segundo diferentes testemunhos uma cidade de tradições musicais, não só no que respeita a serenatas como também a música de salão, razão que levaria certos lisboetas galantes a irem aí passar o inverno[17]. A viola, a flauta, a rabeca, o bandolim eram, no entanto, os instrumentos usados nessas serenatas antes do «enxerto» da guitarra por influência do fado de Lisboa[18]. O meio que recebeu esta canção em Coimbra era absolutamente oposto ao da capital. Ali, marginal, composto de marinheiros, fadistas, prostitutas, embora fruindo eventualmente da simpatia de alguns aristocratas. Aqui, formado por estudantes universitários, mesmo que de origem social minimamente variável: vocacionado, portanto, a receber influência de uma musica mais erudita, especialmente das modinhas portuguesas e brasileiras, então em grande moda nos salões (e que são, em última análise, árias edulcoradas)[19], das árias de certas óperas mais conhecidas, eventualmente, mais tarde, de lieder[20]. Passando dos seus marcos fundadores reais e míticos, como João de Deus e Augusto Hilário, aos seus continuadores, às vozes mais antigas conservadas em gravações, como a de António Menano, e às modificações de configuração, afinação e dedilhação introduzidas na guitarra por Artur Paredes, esta galáxia só pode ser vista em perpétuo movimento, com pontos de maior continuidade e pontos de mais clara metamorfose. Os «puristas» que querem cristalizar ad aeternum aquilo a que chamam inquestionadamente a tradição estão, de um modo geral, a tomar a parte pelo todo, fazendo passar por ele o corte diacrónico que viveram[21]. Daí a exclusão radical do chamado fado de Coimbra da grande renovação surgida na década de 60 com José Afonso, Adriano Correia de Oliveira, Luís Goes.
Qualquer erro (se o é o da designação de «fado», neste caso), por maior que seja, não surge em princípio sem razão. Assim, se o fado de Coimbra se foi afastando progressivamente do de Lisboa não só a nível musical—adopção do compasso quaternário e de um tom maior, riqueza de modulações, bem na linha do canto Romântico[22] — como poético — acentuação de uma vertente lírica, elegíaca, não narrativa — continua a ter em comum com ele a origem, um certo tom nostálgico, a tensão — contenção gestual, o acompanhamento à guitarra e à viola. Na insistência em adoptar qualquer designação outra que não fado haverá, penso, por parte de certos autores uma vontade inconsciente de afastar toda a pesada aura de marginalidade tradicionalmente conotada pelo género lisboeta que a tantos fez brotar florilégios de diatribes[23].
Globalmente considerado, o fado de Coimbra é formado por uma pluralidade de formas poético-musicais muito diversas. De facto, desde, pelo menos, António Menano e Edmundo Bettencourt que se conhecem, incorporadas no repertório Coimbrão, toadas tradicionais da Beira, do Alentejo, dos Açores, etc.[24], lado a lado com composições originais, frequentemente constituídas por duas quadras, outras vezes por esquemas estróficos diversos onde chega a ser incluído, embora raramente, o soneto. Apesar de ser, como fiz notar, uma canção estudantil, de «doutores» segundo a designação coimbrã, transmite-se com características muito marcadas de forma tradicional e, por isso, marginal à literatura-instituição. Assim, reinterpreta, reinventa canções que, por simples esquecimento do autor circulam como anónimas[25]; adapta novas letras a novas músicas e reciprocamente; selecciona nos monstros sagrados da poesia antiga e, sobretudo, contemporânea, alguns poemas ou fragmentos breves, muitas vezes os mais simples e mais estruturados sobre clichés expressivos[26]. Essa selecção, fá-la de um modo análogo à poesia tradicional, alterando a ordem, trocando, recompondo, colando blocos móveis de poesia e de música conforme a necessidade, a memória, o momento. Há fados atribuídos a certos autores cuja autoria tem pouco de certo. Outros, cuja a autoria é correctamente atribuída mas sofre uma manipulação livre, fazendo de peças soltas um todo adequado a uma canção. Dois exemplos: andam quadras de António Nobre em vários fados, algumas anonimamente, como esta, do Só, às vezes incluída no «Fado corrido», outras no «Vira de Coimbra»:

«Vou encher a bilha e trago-a
Vazia como a levei!
Mondego, qu'é da tua água?
Qu'é dos prantos que eu chorei?»[27]

O «Fado d'Anto», cuja autoria é atribuída (e correctamente) a Nobre, é formado por quadras aglutinadas ad libitum do citado autor, uma publicada no Só, outra em Primeiros Versos, outra em Despedidas, apresentando, na sua realização cantada, algumas diferenças em relação ao original[28]. Este é, de facto, um campo de oralidade fundamental definindo-se mais como movência do que como fixação-citação exacta de um texto. Todo o trabalho tende para a performance, não necessariamente de rua, mas pura performance em que o intérprete representa como que uma autoridade autoral. Cada cantor oscila entre cantar um fado já pertencente ao reportório tradicional como outro cantor, aqui investido da autoridade máxima, de quem o aprendeu, ou alterá-lo em busca de uma perfeição pessoal sempre sonhada e nunca atingida. Se o fado não vive numa oralidade pura, como os cantos dos iletrados ou das culturas primitivas, vive entre uma oralidade segunda e uma oralidade mista, para usar os termos de Zumthor[29], socorrendo-se do escrito apenas como apoio a um trabalho que se realiza de uma forma essencialmente oral e, se possível, ao vivo. Por isso a oralidade mediatizada, patente nas gravações é, para além de um registo precioso, quase sempre um adjuvante de novas performances.
Nesta galáxia sonora em expansão, praticada com as características de fenómeno oral e portanto hoje, depois de Gutenberg, excêntrica face à cultura dominante, mesmo quando os seus cultores são gente de letras ou investigadores universitários, o verdadeiro fio unificador é a voz. O fado de Coimbra caracteriza-se por um estilo vocal próprio: sério, elegíaco, lírico, docemente apaixonado sem objecto, desenvolvendo numa breve canção o ponto de exclamação que, pensa-se na esteira de Valéry, estará na origem mítica da poesia. Óscar Lopes sublinha que o fado de Coimbra se estrutura «segundo uma linha melódica na organização à guitarra e/ou viola e um páthos tipicamente romântico nos portamentos que prolongam ad libitum as sílabas tónicas das palavras de efeito»[30]. Normalmente o cantor não possui grandes conhecimentos de canto. Exige-se-lhe uma bela voz de tenor ou, raramente, de barítono, que ele valoriza com uma emissão e dicção cuidadas mas sem grandes virtuosismos[31], Talvez por isso a voz resulte generosa e larga, sem a aspereza de certas emissões tradicionais e sem os estragos de artificialismo tantas vezes produzidos pelo estudo do canto[32]. Nestas composições a que, com Barthes, poderíamos chamar Música Prática, isto é, mais do que para ser ouvida, para ser feita, a voz é duplicada pela outra voz, dissimulada, do acompanhamento. Através da voz revela-se, num espanto concomitante, a plena reverberação da língua. Atrevo-me a estabelecer aqui um paralelo com as célebres afirmações de Barthes sobre a melodia francesa: «C'est le champ (ou le chant) de célébration de la langue (...) cultivée»[33]. (In)consciente e (in)directamente na linha do canto Romântico, o fado preenche em certa medida, na cultura poético musical portuguesa o lugar quase sempre vago do canto cuidado, especialmente em português: ópera e, sobretudo, lied. Sem grandes tradições entre nós, pelo menos junto de um público alargado, os lieder de Schubert ou Schumann não foram substituídos, a nível significativo, por congéneres canções portuguesas que, mesmo existindo, nunca conheceram grande voga em Portugal após o declínio da modinha. Pelo contrário, pode afirmar-se que têm existido sérias reservas ao cantar em português, havendo as mais das vezes um mau relacionamento com a língua[34], hoje em dia agravado pelo crescente desaparecimento do hábito de dizer poemas ou mesmo, apenas, do puro prazer de falar. Quantas vezes o recurso às modinhas brasileiras em programas contemporâneos será o convite ao retorno a um português que se outrou[35].
A especialização do Fado de Coimbra num timbre próprio, o tenor, situa-se num terreno híbrido, de transição entre a ópera e o lied. Neste, segundo Barthes, os quatro registos vocais definem uma estrutura edipiana. Pelo contrário, o lied, embora necessitando da voz, vai abolir as vozes como sistema de oposições[36]. Assim, no chamado Fado de Coimbra, expurgado o dramatismo operático, especializa-se, perpetua-se, discretíssimo, subterrâneo, o papel do jovem, do filho. A ninguém como a ele são endossadas certas imagens líricas elementares, obsessivas[37]. A ninguém como a ele o papel da reiteração do lirismo, da esperança. E quando, na década de sessenta, surgiu em plena força a canção de intervenção, com raízes inequívocas no Fado de Coimbra, como é geralmente reconhecido por quem se tem debruçado sobre ela[38], foi ainda o timbre conotativamente juvenil, o tenor, aquele que produziu e difundiu os cantos contra a ditadura. Foi ainda este filho simbólico que aglutinou os anseios de um grupo muitíssimo mais vasto e diversificado, na experiência de celebração laica de um ângulo festivo, incomparável, do 25 de Abril de 1974: a de (por sinédoque) um país a cantar.
Nesta reconciliação da poesia consigo própria, com a língua e com a voz desempenhou papel definitivo, no depurar progressivo do lirismo de timbre filial, a areia polícroma e movente a que chamamos fado de Coimbra. Sobre a sua permanência e metamorfose como objecto último, essencialmente vocal compôs Manuel Alegre «Trova Nova»:

«Já não há capas ao vento
Nesta nossa trova nova
E de jeans ou de rock
Nem por isso é menos trova

Chega o tempo de outra trova
Menos dor menos lamento
Em Coimbra sempre nova
Chega a trova deste tempo

Trova do amor e talvez
Trova de outro amor mais puro
Porque é de Pedro e de Inês
Com raízes no futuro

Trova de um outro choupal
Que já está dentro de nós
E onde em vez do rouxinol
Chega a vez da nossa voz.»[39]


(*)Nascida e criada no Porto, Vera Vouga é licenciada em Filologia Românica pela F.L.U.P., onde tem desenvolvido actividade docente e de investigação, especialmente nas áreas de Literatura Portuguesa Moderna e Contemporânea e Teoria Literária. Vê com gratidão convergir no vector central dos seus estudos – a Versificação, e, por correlato, a Crítica Textual e Genética – a pródiga experiência de ter nascido numa família em que todo o registo sonoro era natural e festivo: da quadra improvisada ao piano e ao canto, o uso da voz duplicando o milagre quotidiano de comer pão com manteiga. Estudou particularmente piano e canto; fez declamação e teatro. Assim pôde alargar, numa sinédoque global, cujos riscos e limites perfeitamente assume, um olhar de análise sobre objectos como Rimas Infantis, Romances Tradicionais, Fado de Coimbra, Lieder de Duparc e Fauré. Aos 47 anos acredita cada vez mais que a investigação deve cruzar o rigor da mais alta fasquia e o júbilo, de intuição irrecusável, da criação.
O presente texto é uma versão refundida da comunicação apresentada no 1.° Congresso Português de Literaturas Marginais, Abril de 1987; publicada na Revista da Faculdade de Letras do Porto, Línguas e Literaturas, II Série, Vol. VIII, pp. 47-62, 1991.
Quinze anos passaram sobre o olhar demorado e atento com que foquei este sistema da galáxia sonora. O texto que, por amável insistência de António Manuel Nunes, agora reedito, terá de ser forçosamente lido como um documento histórico datado; tantas coisas novas vieram a lume que revê-lo, se o tempo o tivesse permitido, seria necessariamente refazê-lo. Nessa impossibilidade, dei apenas maior desenvolvimento a duas ou três notas, sobre questões meramente pontuais. (Por exemplo, não foi possível verificar, apesar da solicitude extraordinária do Dr. Fernando Guimarães, Dr.ª Fátima Tavarela e Dr.ª Paula Bonifácio se, conforme indicação do Dr. António Manuel Nunes, a quadra citada na segunda epígrafe como anónima é, de facto, da autoria de Armando Cortes-Rodrigues.) Se algum mérito o texto tem — e devo dizer que, nas suas grandes linhas, ainda o subscrevo — é o de provir de alguém que, sem as benesses e as peias da vivência memorialista, salta a pés juntos, com paixão que se quer rigorosamente medida, no perpétuo movimento da voz humana e da voz instrumental. Na linha do Filólogo Celso Cunha, a quem tive a alegria de proporcionar um longíssimo serão desta música prática, que também a ele fascinava. E também na do ímpar Linguista, Semiólogo e Poeticista Roman Jakobson que afirmou um dia, na célebre paráfrase de Terêncio, «Linguista sum; linguistici nihil a me alienum puto», e de quem me confesso a mais modesta, anónima, grata e permanentemente deslumbrada discípula.

[1] SARTRE, Jean Paul — Qu'est-ce que la littérature?, Paris, NRF-Gallimard, 1972, p. 21.
[2] COELHO, Trindade — In Illo Tempore. Estudantes, lentes e futricas, 8.ª ed. Lisboa, Portugália, 1969; CALISTO, Diamantino — Costumes Académicos de Antanho, 1858-1950, Porto, Tip. Imprensa Moderna Ld.ª, 1951; BRAGA, Teophilo — História da Universidade de Coimbra nas suas relações com a Instrução Publica Portugueza, t. III, 1700 a 1800, Lisboa, Academia Real das Sciencias, 1898; FERRÃO, António Duarte — Palito Métrico Lavrado no Lorvão da Pachorra com a ferramenta de Cachimonia embrulhada no Título de Calouriada e offerecido aos Regalões do Parnaso no esquipatino pires de um Poeta Mestiço, 5.ª ed., Coimbra, Ty. do «Paraízo Terraqueo» Reis Leitão edit., 1900; VASCONCELOS Antão de — Memórias de Mata-Carochas, Porto, Empreza Litteraria e Typográphica Editora, s.d.; XAVIER, Alberto — História da greve Académica de 1907, Coimbra, Coimbra Ed., 1962; LOPES, António Rodrigues — A sociedade tradicional académica coimbrã, Introdução ao estudo etnoantropológico, Coimbra, 1982; ANDRADE, Mário Saraiva de — Mataram um Espantalho, Em defesa da Praxe, Coimbra, Coimbra Ed., 1959; CAIADO, Carlos (comp.)—Antologia do Fado de Coimbra, tomo I, Coimbra, 1986; MORAIS, J. Ribeiro (comp.) — Fados e Canções de Coimbra, Porto, 1982; SOUSA, Afonso de — O Canto e a guitarra na Década de Oiro de Academia de Coimbra (1920-1930), 2.ª ed. ilustr., Coimbra, 1986; Id. — Resposta a «Algumas interrogações sobre Artur Paredes» (1899-1980), dactilografado.
[3] A lista de gravações é muito longa, pelo que é impossível incluí-la. De qualquer modo, algumas das obras bibliográficas citadas contêm indicações discográficas.
[4] CAIADO, Carlos — O.c.; COELHO, Trindade — O.c.; LOPES, Óscar — «Homenagem a Adriano Correia de Oliveira», in Uma Arte de Música e Outros Ensaios, Porto, Oficina Musical, 1986; FREITAS, Frederico de — O Fado, Canção da Cidade de Lisboa. Suas origens e Evolução, Lisboa, sem editor, 1973; CORREIA, Mário — Adriano Correia de Oliveira. Vida e Obra, Coimbra, Centelha, 1987.
[5] LEÇA, Armando — Da Música Portuguesa, Lisboa, Lumen 1922; Id., Música Popular Portuguesa, 1.° volume, Porto, Editorial Domingos Barreira, s.d.; FARIA, Francisco — Fado de Coimbra ou Serenata Coimbrã?, Coimbra, Comissão Municipal de Turismo, 1980.
[6] SOUSA, Afonso de —O canto e a guitarra..., cit.
[7] ZUMTHOR, Paul — Introduction à la poésie orale, Paris, Seuil, 1983.
[8] TOLENTINO, Nicolau — Obras Completas com alguns inéditos e um ensaio biográphico-crítico por José Torres, Lisboa, Typographia de Castro e Irmão, 1861, p. 250:

«Em bandolim marchetado
Os ligeiros dedos promptos
Louro paralta adamado
Foi depois tocar por pontos
O doce londum chorado

Se Marcia se bamboleia
Neste innocente exercício;
Se os quadris saracoteia;
Quem sabe se traz cilício,
E por virtude os meneia?»

Sobre o fado ver CARVALHO, Pinto de (Tinop) — História do Fado, Lisboa, Empreza da História de Portugal Sociedade Editora, 1903; PIMENTEL, Alberto — A triste canção do Sul (Subsídios para a história do fado), Lisboa, Livraria Central, 1904; FORTES, José Maciel Ribeiro — O Fado. Ensaios sobre um problema Etnográfico-Folclórico, Porto, Companhia Portuguesa Editora Lda., s.d.; LEÇA, Armando — Da Música Portuguêsa, cit.; Id., Música Popular Portuguesa, cit.; FREITAS, Frederico de — O.c.; OSÓRIO, António — A Mitologia Fadista, Lisboa, Livros Horizonte, s.d. (1974); SIMÕES, Armando — A Guitarra Portuguesa; bosquejo histórico, Évora, 1974.
[9] NEVES, César das; CAMPOS, Gualdino de — Cancioneiro de Músicas Populares para canto e piano, 3 vols., Porto, Typographia Occidental, 1893/95/98; cf. ainda Trovador (colecção de modinhas, recitativos, árias, lundús, etc.), Nova edição correcta, Rio de Janeiro, Livraria Popular de A. A. da Cruz Coutinho — Editor, (Porto, Typ. de António José da Silva Teixeira), 5 vols., 1876.
[10] Cf. SIMÕES, Armando — O.c.
[11] Cit. por CAIADO, Carlos — O.c., p. 202.
[12] LEITE, António da Silva — Estudo de guitarra, em que se expõem o meio mais fácil para aprender a tocar este instrumento..., Porto, Na Officina Typografica de Antonio Alvarez Ribeiro, 1796, Reedição facsimilada, Lisboa, [.P.P.C. Dep. de Musicologia, Lusitana Música, II/Opera Rerum Scriptorum n.° 2, 1983. No que respeita à popularidade do instrumento, na época, atente-se nestas afirmações com que o A. inicia o «Prólogo»: «Amigo Leitor, por vêr o quanto me há sido custoso, na multidão dos Discípulos, que hei tido de guitarra, o estar para cada hum delles escrevendo, não só as necessárias Regras...». Outra elucidativa passagem é a que inicia a Parte 11, §1, «Da invenção, e serventia da guitarra», p. 25: «A guitarra, que segundo dizem, teve a sua origem na Gram-Bretanha, he hum instrumento que pela sua harmonia, e suavidade tem sido aceito por muitos póvos, que achando-a, capaz de supprir por alguns instrumentos de maior vulto, como o Cravo, e outros; e assás sufficiente para entretenimento de huma Assembleia; evitando o incommodo, que poderia causar o convite de huma Orquestra a adoptárão uniformemente, esmerando-se em a tocarem com toda a destreza; eu vendo que a Nação Portugueza a tinha também adoptado, e se empenhava em tocalla com a maior perfeição, desejando concorrer para a instrução dos meus Nacionais...».
[13] Cf. LEÇA, Armando — Da Música Portuguesa, cit., e FARIA, Francisco, — O.c.
[14] Anónimo, cit. por FREITAS, Frederico de — O.c., p. 235.
[15] Cf. CARVALHO, Pinto de (Tinop) — O.c.; COELHO, Trindade — O.c.; FREITAS, Frederico — O.c.
[16] Cit. por CAIADO, C. — O.c., p. 203.
[17] Cf. o testemunho de Ribeiro Sanches citado por BRAGA, Teóphilo — O.c., p. 184: «Também vi homens de maior edade, sem professarem mais do que a vida de feição e galanteo, virem de Lisboa e das Provincias passarem o inverno a Coimbra, na intenção de se divertirem; nunca lhes faltou companhia de jogar, glosar motes, tocar instrumentos, dansar e consumir o tempo na conversação dos equívocos e dos repentes»; cf. ainda este excerto da composição Palito Métrico, cit., p. 162.

«Se fores curioso de instrumentos,
E que saibas tocal-os mui bastante,
Procura-me nos proprios aposentos
Quem nelles vires ser mais ignorante;
Que se nelles tocares mil portentos
Não temas que te falhe algum estudante;
Quer já seja forreta, quer benino.
A procurar depois teu sábio ensino.»

[18] Cf. ainda dois outros excertos de Palito Métrico, cit., p. 211; «Merquei-vos, (...) uma flauta, rabeca e manchinho; (...) uns dados e baralhinhos de cartas; porque, supposto o vosso genio estes serão lá [em Coimbra] todos os vossos estudos e curiosidades»; p. 220: «...usareis de outras ideias folgazonas para ter certo o jantar e ceia. Para isto vos servirão de muito as vossas prendas de tocar flauta e rabeca...».
A propósito da vida musical coimbrã, o citado livro de Trindade Coelho, é uma fonte particularmente rica, sobretudo nos capítulos «O Orfeão académico», «A sebenta» e «A récita dos quintanistas.» De uma leitura global concluímos que a música tinha efectivamente papel importante na vida estudantil tanto em repentinos improvisos como em actividades mais regulares como as récitas dos quintanistas e os saraus do Orfeão Académico, fundado em 1880. Aparecem no livro vários testemunhos de que o fado já fazia parte da vida coimbrã, embora recentemente. Assim, o acompanhamento é referido oscilando entre a guitarra e a viola. Por outro lado, o fado parece relativamente aproximado do de Lisboa, sobretudo no tipo satírico-narrativo, de que são transcritos vários exemplos (pp. 199-201; 221, 253, 278). Que por isso mesmo mantinha, apesar do seu crescente fascínio, uma aura nítida de marginalidade e obsceno, atesta-o a reacção escandalizada de certa solteirona a quem, nuns versos encomendados em troca de um doces, um estudante se atreveu a incluir a palavra «fado», que foi obviamente descodificada, não no seu sentido etimológico, mas no mais recentemente adquirido; transcrevo o excerto (p. 107):

«…………………………
Já não tenho teu talento
Que ameigava a triste sina
Que me deu o duro fado!
………………………….

Mas que demónio foi aquela palavra «fado» no sétimo verso! Pareceu esquesita ao pudor de D. Felicidade — e quiçá Realista! Escandalizou-se! Os outros (...) entraram todos a dar razão à vizinhança, — e a dizer com ela:— Que sim! Que «fado» não era palavra que se escrevesse. Demais a mais, nuns versos para uma senhora! E para uma senhora em convento! — Credo!».
[19] Cf., a este respeito, FREITAS, Frederico de — A Modinha Portuguesa e Brasileira. Alguns aspectos do seu particular interesse musical, Braga, Separata da Revista «Bracara Augusta», vol. XXVIII, fasc. 65-66 (77-78), 1974.
[20] Cf. as afirmações de COELHO, Trindade — O.c., sobre as récitas dos quintanistas: «a [peça] Fábia, nesse ano metia os melhores bocados de música de todas as óperas, com versos de João Penha e Guerra Junqueiro...» (p. 275). De outra peça chamada Dom Quixote diz que «era uma opereta» (p. 283). Do programa apresentado pelo recém-formado Orfeão Académico, destaco «Coro de caçadores de Freychutz de Weber, orquestra e coros e Marcha do Tannhauser de Wagner, orquestra e coros» (p. 84).
[21] Sobre a questão da tradição transcrevo este elucidativo passo de LOPES-GRAÇA, Fernando — «O valor da Tradição nas culturas musicais», Páginas escolhidas de crítica e estética musical, Lisboa, Prelo, s.d., p. 173: «Evidentemente que, mesmo na arte, existem duas formas de tradição: uma tradição petrificada, feita de ideias inoperantes de resíduos de sistemas e de concepções ultrapassados, mas que procuram teimosamente impor-se e uma tradição viva e eficaz, que é aquela que do passado extrai todos os elementos dinâmicos capazes de fertilizar o presente e preparar o porvir. Neste sentido, a tradição identifica-se com a própria evolução histórica, no seu jogo dialéctico de acções e reacções.» No entanto, a tradição é quase sempre pensada no primeiro dos sentidos citados.
[22] Cf. LEÇA, Armando — Da Música Portuguesa, cit.; FARIA, Francisco — O.c.
[23] Alguns exemplos escolhidos entre muitíssimos (e veementes) disponíveis: FORTES, José Maciel Ribeiro — Oc., p. 28: «A África forneceu a droga, Lisboa deu o recipiente para aquela se decompor resultando o Fado lisbonense»; ARROIO, António, cit. por FORTES, Ribeiro — O.c., p. 84 «Portugal é positivamente um doente moral e o Fado basta para se formular o diagnóstico da doença»; VIEIRA, Afonso Lopes — «Da linguagem e do conto», Em Demanda do Graal, Lisboa, Portugal — Brasil Id., 1922, p. 359: «Nessa canção infame (e porque não encantadora às vezes?) a alma de Lisboa desabrocha e exprime-se numa linguagem caricatural e acobreada que não é já decerto a portuguesa»; LEÇA, Armando — Da Música Portuguesa, cit., pp. 37-38: «Entre nós, a adopção do Fado é um gravíssimo erro sentimental, documento frizante de sociedade portuguesa destes últimos decénios. (...) É o Fado um remendo no Cancioneiro Português, a sua página gongórica, um pingue-pingue choradinho...»; OSORIO, António — O.c., p. 107: «Conforme se viu, contaminou o fado a própria Literatura, não é de mais insistir nesse ponto, que demonstra bem como o fado não se reduz a um fenómeno de marginais ou de superfície, a um contágio isolável, por ser uma moléstia endémica, enraizada fundamente no terreno social. Pois bem, na influência contínua e longe de ser pequena do fado sobre a literatura (e, conotativamente, desta sobre ele) encontra-se o ponto mais grave desta enfermidade colectiva porque aí se nos de para a sua extensão.»; LOPES-GRAÇA, Fernando — «Variações sobre o fado», Reflexões..., cit., p. 222: «Ah! sem dúvida o fado é uma coisa inferior, inferiosíssima. Mas, primeiro que tudo, por razões estéticas antes que éticas»; p. 224: «Se o fado é vício, um pecado, um estupefaciente, um dissolvente das energias morais e sociais e todas essas coisas tremendas que os senhores sociólogos dizem que ele é — há que investigar porque é que o é»; p. 225: «Muito bem: combata-se o fado»; p. 227; «Criemos a alegria! Sublime Tarefa.»
[24] Repare-se que estes cantores continuaram, embora dando-lhe uma diferente dimensão lírica, individual, a linha de adaptações de melodias populares que, conforme testemunho de COELHO, Trindade — O.c., pp. 83-4 vinha sendo prática do Orfeão Académico desde a sua fundação.
[25] «… quer o fado lisboeta, quer o fado coimbrão estão ligados a uma autoria poética a que conferem, por vezes, uma espécie de consagração pelo anonimato. LOPES, Óscar — O.c., p. 143.
[26] Cf. as três leis referidas como estruturantes da canção por SARAIVA, Arnaldo — «Estudo crítico» a Canções de Sérgio Godinho, Lisboa, Assírio e Alvim, 1983, p. 21: «da brevidade, da medianidade e da fácil memorização». Mesmo se as outras não estão ao mesmo nível imediatamente presentes, a primeira preside às adaptações (de supressão) frequentemente imprescindíveis para que o poema, previamente existente, caiba nos limites razoáveis da canção. Escolho, entre os mitos disponíveis três adaptações deste tipo: «As minhas asas», Almeida Garrett/António Portugal; «Lianor», Camões/José Mesquita; «Trova do vento que passa», Manuel Alegre/António Portugal. A questão dos limites da duração é tão crucial que o mesmo aconteceu em certos lieder. Veja-se o caso de Duparc que, musicando o poema de Baudelaire «L'Invitation au voyage», suprimiu a segunda das três estrofes.
[27] CAIADO, Carlos — O.c., pp. 36-8, regista como popular na versão de José Miguel Baptista, a referida quadra incluída em «Para as raparigas de Coimbra», Só, Paris, 1892, p. 70; apresenta-a com pequenas diferenças relativas à pontuação ou à substituição de «Vou» por «Fui», mais intuitivamente estruturante de uma sequência causal-temporal; além disso, mais clara como forma fónica. Transcrevo a versão da Antologia, cit., p. 27:

«Fui encher a bilha e trágo-a
Vazia como a levei
— Mondego, que é da tu'água
Que é dos prantos que eu chorei.
[28] Transcrevo o Fado de Anto, criado por Francisco Menano com a localização de cada uma das quadras nas obras de António Nobre e a transcrição simples da gravação, registada na Antologia, cit., p. 78.

«A cabra da velha Torre «O sino da velha torre
Está chamando por mim Meu amor, chama por mim
Quando um estudante morre Quando um estudante morre
Os sinos tocam assim…» Os sinos tocam assim»

Primeiros Versos
Porto, 1921, p. 97

«Ah quem me dera abraçar-te «Ó quem me dera abraçar-te
Contra o peito, assim, assim Contra o peito assim, assim
Levar-me a morte e levar-te Levar-me a morte e levar-te
Toda abraçadinha a mim!» Toda abraçadinha a mim»

Despedidas
Porto, 1902, p. 53

«Minha capa vos acoite «Minha capa vos acoite
Que é p'ra vos agazalhar: Que é p'ra vos agasalhar
Se por fóra é cor da noite, Se por fora, é cor da noite
Por dentro é cor do luar…» Por dentro, é cor do luar»


Cit., p. 69

Confrontando a transcrição da Antologia com as versões publicadas por Nobre ou seu irmão Augusto Nobre (Primeiros Versos e Despedidas) nota-se, antes de mais, que a autoria da letra é atribuída, na citada antologia, por tradição. As diferenças de pontuação (às vezes gramaticalmente pouco correctas) apontam para a passagem a escrito, através do canto, sem o cotejo com o original. Este facto é confirmado pela nota da p. 79: «Embora a música seja a mesma, a letra deste fado foi encurtada para as duas primeiras quadras por Camacho Vieira, Edmundo Bettencourt, Lacerda e Megre e José Afonso, tendo estes três últimos modificado o primeiro e o sexto versos para «A cabra da velha Torre» e «Junto ao peito assim, assim», respectivamente.» Ora a forma do primeiro verso assinalada como variante é precisamente a original, coisa que o organizador da antologia desconhece.
Segundo recente indicação de António Manuel Nunes, a partitura do Fado d’Anto, estreado em 1915, registava, além das já citadas quadras, mais três quadras de Nobre, a saber, «Vou encher a bilha e trago-a», que, como acabámos de ver, aparece em outras composições (cf. nota 27), «Ó sinos de Santa Clara», do Só, e «Meninas, lindas meninas», espécie de refrão inciso no poema «Purinha», da mesma obra. Creio que estes novos dados mostram que, na criação, o trabalho é já de «montagem»; na difusão, forma de oralidade mista, apesar da existência da referida partitura, sofre autonomização e redução claras, a exemplo do descrito na nota 26.
[29] ZUMTHOR, Paul — La lettre et la voix. De la «Littérature» Médiévale, Paris, Seuil, 1987, especialmente pp. 18-19. Id. — La poésie et la voix dans la civilisation médiévale, Paris, P.U.F., 1984.
[30] LOPES, Óscar — O.c., p. 144. Saliente-se que as sílabas que merecem realce mais sistemático são quase sempre as coisas de final de verso. É importante reparar que, quanto à execução no canto, a influência de prolongamento e/ou mesmo desdobramento das sílabas tónicas, mesmo nos versos agudos, revela clara influência da música erudita: ópera e lied, mesmo quando se trata da interpretação de composições recolhidas da etnografia portuguesa (ver nota 25). Paiva Boléo, em recensão a CUNHA, Celso Ferreira — O Cancioneiro de Joan Zorro, Estudos de Linguística Portuguesa e Românica, vol. I, T. II, Coimbra, Acta Universitatis Conimbrigensis. Por ordem da Universidade, 1975, p. 24, afirma que «na poesia recitada ou no canto moderno (...) [se verifica] um alongamento da vogal tónica» substitutivo da paragoge considerada por Celso Cunha em «Sobre o e paragógico na épica e na lírica», Língua e verso, 3.ª ed., revista e aumentada, Lisboa, Sá da Costa, 1984, p. 65 «antes de tudo (...) um necessário apoio rítmico para acomodar as palavras agudas da língua à final grave, tradicional e típica da poesia peninsular: um arcaísmo — ou melhor, um tradicionalismo, antes que linguístico rítmico»; cf. a este respeito MENÉNDEZ PIDAL, Ramón — Romancero hispánico, T1, Madrid, Espasa Calpe, 1953. Se, do ponto de vista da transmissão, o fado de Coimbra assume a despreocupação e movência das formas tradicionais (ver notas 24 e 29), do ponto de vista da dicção, rejeita as vias mais tradicionais, hoje tidas como arcaizantes ou disforicamente populares, procurando outras alternativas mais conotadas com o tratamento erudito e/ou simplesmente moderno da língua.
[31] Cf. a este respeito as afirmações de LOPES-GRAÇA, Fernando, em «Do virtuosismo e dos virtuosos», O.c., pp. 77-78: «Digamos que há uma virtuosidade adjectiva e uma virtuosidade substantiva: aquela é a virtuosidade romântica, a virtuosidade dos virtuosos, que é a virtuosidade considerada não como meio mas como fim a outra é a virtuosidade simplesmente, que consiste também, sem dúvida, na perícia técnica mas já existente por e para ela mesma se não que posta ao serviço da obra e consubstancial a ela. A segunda é modesta e apaga-se ante a obra; a primeira é exibicionista e sobrepõe-se-lhe».
[32] Se toda a aprendizagem resultando em artificialismo é desagradável, o caso agudiza-se no que respeita ao tantas vezes infeliz tratamento ou simples desatenção que tem merecido a língua portuguesa na música. Cf. a este respeito as lúcidas páginas de LOPES-GRAÇA, Fernando — «Acerca dos poetas e dos compositores modernos portugueses» e «A língua portuguesa e a música», O.c., pp. 109-117 e 165-172, respectivamente; Id. Dois diálogos, II — com Alberto de Lacerda em Londres», Reflexões sobre a música. Obras Literárias, Lisboa, Cosmos, 1978, pp. 252-9.
[33] BARTHES, Roland — «La musique, la voix, la langue», L'obvie et et l'obtus, Paris, Seuil, 1982, p. 249. De um modo geral recomenda-se a última parte do livro com subtítulo «Le corps de la musique».
[34] Cf. nota 32. Como sublinha o Autor citado aí, a ópera de Alfredo Keil, a Serrana, na sua estreia, em 1899, «foi ainda cantada em italiano, só depois vindo a sê-lo em português», Páginas escolhidas..., cit.
[35] Afirma lapidarmente LOPES, Óscar — «A Porta Mágica — Haroldo Maranhão. Como eu gosto deste livro», O.c., pp. 100-1: «esta graça é também a graça de um português que não é o meu e onde todavia germinam alguns dos melhores rebentos que as gramáticas, as escolas e outras alfândegas da língua secularmente me rasoinaram antes mesmo de me assomarem à boca. (...) Para um português, ler ou ouvir brasileiro ou galego é já sentir como a nossa fala podia ser de outro jeito, é ver rever descerem todos os ramos da hera a partir de um segmento que estava seco, nem por ele se dava, não vinha de lá detrás nenhum seiva ».
[36] BARTHES, Roland — «Le chant romantique», L'obvie et l'obtus, cit., pp. 253-5.
[37] Por exemplo, a da relação essencial com a figura da Mãe, como está bem patente no «Fado do Choupal», criação musical de António Menano:

«Minha Mãe quando eu morrer
Chore por quem só chorou
Para então dizer ao mundo
Deus m'o deu, Deus m'o levou

E pr'a ser mais desgraçado
No mundo, do que ninguém
Basta nunca ter andado
Ao colo de minha mãe»

A. Caiado, O.c., p. 114.
A uma pessoa sem conhecimento nem simpatia pelo fado de Coimbra ouvi uma vez fazer este comentário a um cantor veterano: «Que coisa ridícula este tamanhão a chamar pela mãe!...».
[38] Cf. LOPES, Óscar — O.c.; LETRIA, José Jorge — O.c.; CORREIA, Mário — O.c., especialmente os testemunhos de Manuel Alegre, pp. 76-8, e Fernando Pacheco, pp. 67-8.
[39] Cf. brochura anexa à antologia discográfica Tempo(s) de Coimbra: oito décadas no canto e na guitarra, ed. Leonel de Brito/JORSOM, s.d. [1985], p. s/ n.°.
Hoje, perante a preocupante generalização, mesmo nos meios académicos, de música medíocre a autocomplacente, que amplifica e corporiza um mau gosto massificado e sem limites, creio que mais comovente se torna o «milagre» desta voz pura e filial que, por um tempo, desabrochou em unanimidade exaltada e generosa.

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