quinta-feira, julho 14, 2005

A Guitarra Portuguesa, por Ernesto Veiga de Oliveira

A «guitarra portuguesa» é um cordofone com a caixa harmónica piriforme - o bojo ou cabaço -, sem enfranque, a aguçar para o braço, e de fundo chato e tampos aproximadamente paralelos. A sua boca é redonda; arma com seis ordens de cordas todas metálicas, as três primeiras com cordas lisas, as três últimas com corda lisa e bordão em oitava.
As primitivas guitarras tinham as primeiras quatro ordens duplas, e as duas últimas singelas - dez cordas portanto ; actualmente, todas as ordens são duplas (e há mesmo casos em que as três últimas ordens são triplas).
Silva Leite, em 1796, dá-lhes, do agudo para o grave, os nomes de primas, segundas, terceiras, quartas, quinta e sexta, e indica as seguintes qualidades: primas(duas), carrinho n.° 8 (arame branco); segundas (duas), carrinho n.° 6 (arame branco); terceiras (duas) carrinho n.° 4 ; quartas (duas), bordões cobertos ou bordões G--sol-ré-ut (amarelas); quinta, bordão de E-lá-mi; e sexta, outro bordão de G-sol-ré--ut. César das Neves, por seu turno, dá àquelas cordas os nomes de primas, segundas, toeiras, e bordão de primas, bordão de segundas e bordão de toeiras, indica as seguintes qualidades : verdegais de aço n.° 8 ou 9 para as primas, 6 ou 7 para as segundas, 4 ou 5, ou amarelas, para as toeiras, e bordões n.º l, 2 e 3 para os três bordões respectivamente. Os guitarristas mais recentes chamam terceiras às toeiras, e indicam cordas de aço nº l0, 8 e 4 para as cordas lisas, respectivamente. A afinação desta guitarra era sol3 -mi3 -dó3 -sol2 -mi2 -dó2 .
A escala é em ressalto sobre o tampo, vindo até à boca. Esses primitivos modelos eram de dimensões consideravelmente mais pequenas do que os actuais, especialmente no braço, e sobretudo na caixa, que era por vezes mesmo extremamente diminuta e baixa. O número de trastes era então menor do que hoje: em 1796, Silva Leite indica doze (ou seja uma amplitude de duas oitavas e meia - como no cistro - própria para acompanhamentos); nos começos do século XIX, viam-se catorze ou quinze; em 1875, aparecem guitarras apenas com dez, para acompanhar a voz no fado; hoje obrigatoriamente, eles são sempre em número de dezassete (correspondendo a três oitavas e meia).
Segundo Armando Simões, em Coimbra, no século XIX, não se construíam guitarras: a verdadeira indústria da construção desses instrumentos, naquela cidade, remonta ao fim do século XIX e primeiro quartel do século XX. As primeiras guitarras ali utilizadas vieram de Lisboa, trazidas pelos estudantes; mais tarde elas vinham do Porto, mesmo quando já lá as faziam.
Actualmente, os violeiros fabricam guitarras de três tipos: o de Lisboa, que é o mais pequeno, com caixa menos alta e sobre o redondo, de timbre mais «aguitarrado», ajustado aos «tremidinhos» ou trinados do fado corrido; o de Coimbra, que é o maior, com a caixa mais aguçada e a escala mais comprida, ajustada ao tipo de balada dessa forma, em que a guitarra acompanha o canto com acordes; o do Porto (e Braga), semelhante ao de Coimbra, mas um pouco mais pequeno.
A guitarra de Lisboa, própria para profissionais, é de factura cuidada, e tem um som mais brilhante; a de Coimbra, própria para amadores, e para ser tocada ao ar livre, é em regra mais barata. Num modelo antigo comum, a guitarra pode medir cerca de 73 cm de comprimento total, sendo 19 para a cabeça, 20 para o braço e mais 7 para a escala, e 34 para a caixa; a largura máxima desta é de 27 cm, e a altura 8. Num modelo recente comum, por sua vez, ela pode medir cerca de 81 cm de comprimento total, sendo 20 para a cabeça, 18 para o braço e mais 14 para a escala e 43 para a caixa, com 38 de largura máxima, e 8 a 9 de altura. A escala, junto à boca, pode ser cortada por esta ou terminar em curva que lhe fica tangente, ora ainda formar recorte assimétrico do lado das cordas mais agudas, que vem um pouco abaixo, já sobre a boca. Ainda segundo Armando Simões, as guitarras do tipo de Coimbra afinavam dois pontos mais baixo que o lamiré, embora a sua escala fosse mais comprida e com o mesmo número de pontos que as dos tipos de Lisboa e do Porto; nelas, as ilhargas eram muito baixas, ficando o tampo e o fundo muito próximos, com prejuízo do brilho do som, que em contrapartida era mais grave e mimoso; e esta característica ter-se-ia fixado nos fins do século XIX, a partir da guitarra do Hilário, construída em Lisboa por Augusto Vieira.
A cabeça é em Voluta ou gancha. Na guitarra de Silva Leite, ela terminava num pequeno escudo quadrado, que algumas vezes mostrava embutidos em madrepérola ; mais tarde, esse motivo tomou um formato oval, e ultimamente de coração, com monograma (quando o instrumento é de estudantes). Este pormenor ainda hoje se vê nas guitarras construídas ou usadas em Coimbra. Nas guitarras de Lisboa, a gancha ou Voluta é geralmente em caracol; nas do Porto, ela é constituída por uma flor; e, nas guitarras antigas via-se também, por vezes, volutas em cabeças de animal ou com outros motivos - parecendo, em todos os casos, representar o antigo cravelhal do cistro.
Na face anterior da cabeça, num cavado triangular, fixa-se a chapa que faz de cravelhal onde prenderão as cordas, em cima. As chapas, nos exemplares mais antigos, eram do sistema de tarracha e chave, e, de entrada, vinham de Inglaterra: seguidamente o violeiro Sevilhano, do Porto, começou a fazê-las cá, e João José de Sousa, de Lisboa, e Domingos José de Araújo, de Coimbra, e depois outros, seguiram-lhe o exemplo. Hoje, as chapas são sempre do sistema de leque metálico, que veio substituir a tarracha e chave. Noutras formas, também antigas, e em geral mais pobres, aparecem guitarras com cabeça lisa, de madeira, e cravelhas dorsais, como as violas. Em baixo, as cordas fixam-se na ilharga, ao fundo, pelo sistema de atadilho, com botões.
Sempre segundo Armando Simões, o fundo da caixa é em regra plano; mas nos exemplares de construção mais esmerada ele pode ser ligeiramente abaulado. Para o tampo usam-se madeiras pouco densas e portanto mais flexíveis, para que vibre melhor com o som - como sejam a casquinha, o pinho de Flandres ou de Veneza, ou ainda o «Spruce» alemão. A meio abre-se o orifício da boca, que, no século XVIII e começos do XIX ostentava uma bela rosácea lavrada decorativa, também como nos cistros; em algumas guitarras boas (mas raras) vê-se uma boca de cada lado, equivalendo aos «ouvidos» dos cordofones de arco. Para o restante da caixa - fundo e ilhargas - escolhem-se madeiras densas, que reflectem melhor, contra o tampo, o som produzido pela vibração das cordas, como o ébano, o pau-santo, o arce, o mogno, o cedro, a nogueira (e também, nas guitarras de Coimbra, o plátano ou o choupo, que, embora pouco densas, abundam na região), conforme o gosto de cada um e, de certo modo, a sonoridade que se pretende obter; mas, como vimos com os demais cordofones, aparecem muitas vezes exemplares em madeiras escolhidas, com ornatos embutidos de grande riqueza, em osso, marfim e madrepérola. Nos níveis aristocráticos, e na fase mítica do fado, a que adiante aludiremos, aparecem mesmo sumptuosas guitarras de luxo, com o tampo nessas madeiras preciosas e completamente recamado de embutidos. Silva Leite, para que uma guitarra seja boa, indica três princípios a observar: 1) Boa madeira, plátano, e o tampo, de Veneza, de veio fino e rija; o bojo, ou cabaço, redondo para a parte do cavalete, estreito para o « ponto» ; o comprimento desde a 12ª divisão para o cavalete deve ser igual ao da «pestana» para a 12ª divisão. 2) Proporção nas suas partes, sobretudo nas doze divisões do «ponto», 3) Cavalete no seu lugar certo.
A guitarra toca-se numa combinação de pontiado e de rasgado. A mão direita é que bate as cordas, sossegadamente e « sem dar saltos», na altura da boca; o mínimo (e ás vezes também o anelar) apoia no tampo, junto ás primeiras cordas; o médio e o indicador (e outras vezes também o anelar) correm, direitos e flexíveis, as cordas. Com a esquerda (cuja posição varia conforme os tocadores) premem-se as cordas, na escala; mas apenas o polegar e o indicador dedilham «com a ponta da unha» (Silva Leite), e nesses dedos usa-se ora as unhas crescidas ora um curto plectro; o polegar trabalha no bordão de terceiras, ás vezes no de segundas, mas nunca nas três primeiras cordas (hoje em dia isto já não é verdade, obs. nossa); o indicador trabalha nestas, mas pode, sendo conveniente, ir aos bordões, O tocador está geralmente sentado, o corpo direito e à vontade, o instrumento sobre a coxa direita e encostado contra o peito, à esquerda, o leque inclinado para o ombro esquerdo, o braço apoiado, junto à pestana, entre o polegar e o indicador desse lado, sem encostar a palma da mão e sem apertar contra o peito.
Segundo uma corrente que goza em Portugal de grande popularidade, a « guitarra portuguesa» actual seria de origem árabe. Tal orientação funda-se em geral, sem crítica, na razão meramente verbal de uma suposta equiparação do nosso instrumento actual à velha «guitarra mourisca» ou «sarracenica», e no facto da sua associação ao fado, a que essas mesmas orientações atribuem também, por via de regra, origens árabes. Vimos já que a «guitarra mourisca» está na origem de uma linhagem instrumental completamente diferente - as mandolas e mandolinas -, e que a associação da actual guitarra ao fado é um fenómeno muito recente; de facto, parece indubitável que esta «guitarra portuguesa» actual não é senão uma forma nacional, tardia, do cistro europeu seis ou setecentista (que, salvo no que respeita ao cravelhal, tem de facto exactamente a mesma forma que ela, e até em alguns casos o mesmo número de cordas e afinações ,muito apreciado, como dissemos, em Inglaterra nessas eras, onde levava o nome deveras significativo para o nosso caso, de «english guitar», ele próprio talvez herdeiro das cedras ou cítolas medievais.
Estes antepassados do cistro, mesmo depois da época trovadoresca, continuaram possivelmen-te a cultivar-se entre nós; de facto, são talvez cedras ou cítolas os instrumentos que vemos representados num capitel do pórtico manuelino da igreja do castelo de Viana do Alentejo, na arquivolta do pórtico da Batalha, no frontão alto da Igreja de Nossa Senhora da Oliveira, em Guimarães, etc. ; Philipe de Caverel refere-o, sob o nome expresso de cistro, em Lisboa, em 1582. Parece também ser um cistro o instrumento que figura nas mãos de um dos anjos na tela seis ou setecentista da Adoração dos Pastores da Igreja de Santa Maria da Alcáçova em Elvas. Apesar disso, porém, não se pode afirmar que a « guitarra portuguesa» de hoje represente o prolongamento directo e específico da tradição desses velhos instrumentos (e muito menos ainda, como ficou dito, das demais «guitarras» medievais, que nenhuma relação têm com ela). As referências a eles são escassas, e é de crer que, entre o povo, o seu rasto se perdera. O próprio Caverel nota que o instrumento é pouco comum e usado apenas pela gente «mais polida», parecendo pois tratar-se de uma espécie culta ou citadina, cultivada esporadicamente e já talvez por influência geral da moda europeia, mais do que pela força de uma antiga corrente que tivesse perdurado. Na verdade - e sem recusarmos inteiramente possíveis raízes anteriores mais ou menos ténues -, o formato da nossa guitarra actual, e sobretudo o complexo cultural, tão fortemente marcado, em que ela hoje se integra indissoluvelmente, nada parece terem que ver com quaisquer instrumentos nacionais anteriores. A «guitarra portuguesa» representa, segundo toda a probabilidade, a difusão - de resto restrita -, aqui processada não antes do século XVIII, desse cistro ou «guitarra inglesa» do século XVII, adaptada seguidamente a um género vocal próprio, também recente e alheio mesmo à gente do campo, a que as características do instrumento se ajustavam muito convenientemente.
Mário de Sampayo Ribeiro, na falta de notícias expressas e de outros dados, fixa a data provável do aparecimento desse cistro em Portugal entre 1789 - ano em que é publicada a Nova Arte da Viola, de Manuel da Paixão Ribeiro, que ignora ainda completamente a guitarra - e 1796, em que ela é pela primeira vez mencionada, no Estudo da Guitarra, publicado no Porto por António da Silva Leite, para uso dos seus inúmeros discípulos, e em virtude da aceitação e do sucesso que o instrumento tinha entre nós. Por essa obra se vê que as guitarras vinham, de entrada, da Inglaterra, onde eram construídas por um senhor Simpson, mal começavam então a ser aqui copiadas, havendo no Porto um construtor - Luís Cardoso Soares Sevilhano - que já as fazia nessa data quase tão boas como as inglesas .
A guitarra armava então, como dissemos, com quatro cordas lisas duplas e dois bordões singelos, e afinava em dó maior, sol - mi - do (duplas em uníssono) - sol - mi - dó (duplas em oitava), do agudo para o grave . Ela estava então já muito difundida no Porto, onde se usava como instrumento de sala, com acompanhamento de segunda guitarra, substituindo o cravo ou outros instrumentos parecidos, «e assaz suficiente para entretenimento de huma assembleia, evitando o convite de huma orquestra». A guitarra, que Silva Leite julga também ser de origem inglesa, teria, segundo Mário de Sampayo Ribeiro, sido introduzida pela colónia inglesa no Porto, muito importante desde os princípios do século XVIII; assim, seria nos fins desse século, a partir daquela cidade, que ela se difunde por todo o Pais, começando, nas mãos do povo, a substituir a viola, até então dominante . Sempre segundo aquele autor essa fase inicial da popularização e aportuguesamento da guitarra deve corresponder aos tipos com cabeça lisa e cravelhas, como as das violas, porque os nossos violeiros, que as começavam a construir regularmente, não estavam apetrechados para fazerem as cabeças com tarrachas e chave, como os instrumentos ingleses (deve-se notar, porém, que Silva Leite, em 1796, fala já em guitarras de cravelhas).
Mas, segundo o Autor, a viola tinha sobre o novo instrumento uma vantagem: a conjunção de bordões e cordas lisas, que permite dar a mesma nota em oitava e que é uma disposição herdada já da viola quinhentistas de cinco ordens. Ainda segundo Mário de Sampayo Ribeiro, certamente, então, um construtor, cujo nome não ficou registado, teve a ideia de aplicar à guitarra uma dessas cabeças de viola de cinco ordens, mas com doze cravelhas, e, respeitando as seis ordens do novo instrumento, pô-las porém todas em cordas duplas, as três primeiras como já o eram, as três últimas substituídas pelo conjunto de bordão e corda lisa (ficando esta do lado de fora), segundo aquela tradição do encordoamento da nossa viola ; essa nova guitarra - a «guitarra portuguesa» - seria assim a criação de um construtor anónimo dos princípios do século XIX, que tem de tradicionalmente nacional a alternação dos bordões com corda lisa, que, embora seja um traço que ocorre em instrumentos populares de muitos países, se conhecia entre nós de velha data, na viola. Mais tarde, adoptou-se um encordoamento com os três bordões duplos. A partir daquela data, aparecem inúmeros violeiros em Lisboa, de grande nomeada, João José de Sousa (talvez discípulo do Sevilhano, do Porto), dos princípios do século XIX, Henrique Rufino Ferro, dos meados desse século, Manuel Pereira, Augusto Vieira, João da Silva, Domingos José Rodrigues, e igualmente em outras partes, como os Sanhudos, no Porto, e Domingos José de Araújo, em Braga , talvez também discípulo do Sevilhano etc., que constroem instrumentos de excelente qualidade e vão introduzindo modificações que cada vez o especializam mais, relativamente ao género musical que lhes fica ligado exclusivamente, criando mesmo instrumentos de feitura luxuosa, perfeitos e dispendiosos.
A descoberta de uma guitarra, que uma tradição discutível atribui à famosa «fadista» do século XIX, a Severa, de cravelhas e de feição muito popular, construída em Lisboa por Joaquim Pedro dos Reis e datada de 1764, sem contrariar fundamentalmente a teoria explicativa de Mário de Sampayo Ribeiro, a ser autêntica, obrigaria a rever toda a cronologia que esse Autor aponta. Trinta e dois anos pelo menos antes do Tratado de Silva Leite, não só se cultivaria a guitarra entre nós, e não apenas no Porto , mas pelo menos também em Lisboa, mas mesmo ela já aqui se faria numa forma que corresponde à sua segunda fase, e não como instrumento exclusivo de salas, mas igualmente do povo. Dentro da hipótese de Mário de Sampayo Ribeiro, poder-se-ia supor que os cistros ingleses, antepassados da nossa guitarra, tivessem vindo para o Porto muito mais cedo do que aquilo que Silva Leite deixa entender, talvez pouco depois da celebração do Tratado de Metween, e consequente afluxo e fixação de gentes inglesas na metrópole nortenha, e que daí passassem para as salas portuenses, e destas para o povo; é certo que Silva Leite, em 1796 , fala ainda de guitarras de dez cordas e do sistema de tarracha e chave, quando este espécime, que existiria pelo menos há trinta anos, é já de doze cordas e de cravelhas; mas isto poderia explicar-se especialmente pelo facto de Silva Leite se referir ao instrumento burguês, e ser de admitir que, ao lado desse, se tivesse obscuramente definido uma forma popular afim, que lhe adaptasse, como sugere Mário de Sampaio Ribeiro (mas muito antes do que este musicólogo supõe) o encordoamento e até o braço e o cravelhal da viola, também instrumento popular, e aos quais, como dissemos, o próprio Silva Leite já mesmo alude. O silêncio de Manuel da Paixão Ribeiro acerca do novo instrumento é menos de estranhar, não só porque ele trata especialmente da viola, mas também porque, mesmo com esta nova cronologia, a guitarra, em 1789, não tinha então chegado a Coimbra, donde o Autor é natural e onde o seu livro é publicado.
António Osório não parece acreditar na autenticidade desta «Guitarra da Severa», que se integra com particular coerência no processo genético da mitologia fadista. E Armando Simões, na mesma linha, e em decidida contestação, escreve: «a referencia ao ano de 1764 é perfeitamente anacrónica» : «admitindo que em 1764 houvesse já guitarras no Porto,... estas seriam de fabrico inglês e de chapas metálicas de leque», de acordo com a descrição de Silva Leite, de 1796; «a adaptação das cabeças das violas de arame à guitarra faz-se em Lisboa, e data do segundo quartel do século XIX»; e enfim, «as escalas do século XVII (querendo certamente dizer «século XVIII»), não só nas guitarras mas nos instrumentos congéneres, como cistros, violas, e outros, eram de doze pontos, a que correspondia a extensão de uma oitava em cada corda, ao passo que neste exemplar já é de dezassete pontos».
A questão é certamente duvidosa, e de grande melindre. Em todo o caso, porém, notaremos que vários cistros dos séculos XVI, XVII e XVIII possuem escalas com dezassete pontos: o cistro de Girolano de Virchi, de Brescia, de 1574, que pertenceu ao arquiduque Fernando do Tirol; o cistro reproduzido na obra Theatrum Jnstrumentorum, de Michel Praetorius, de I6I5-19 os dois cistros reproduzidos na obra Harmonie Universelle, do Padre M. Mersenne, de 1636 ;as violas de Georgius Sellas, de Veneza, também da primeira metade do século XVII, e de André Hulinzki, de Praga, de 1754; o cistro de Perry, de Dublin, de 1800 (com dezasseis trastos); e outros.
Pedro Caldeira Cabral, com base em dados por ele próprio entretanto descobertos e estudados, pôde formular uma nova hipótese acerca das origens e filiação desta nossa guitarra actual. Pelo especial interesse e importância do assunto, como contributo inédito para a resolução de um dos grandes problemas que a nossa organologia suscita, e que se encontrava em aberto .
A «guitarra portuguesa» está actualmente ligada indissoluvelmente e fundamentalmente ao fado (com acompanhamento de violão), tanto na sua forma de Lisboa como na de Coimbra , mas essa ligação parece na verdade ser um facto recente . No fado corrido, ela faz simplesmente o acompanhamento do canto; quando não há cantor, o guitarrista fantasia variações sobre o tema, abandona-se á inspiração do momento, borda floreios e ornatos. Nos seus primórdios, porém, ela parece ter sido um instrumento da burguesia, que servia qualquer género musical, «sonatas», «minuetos» , « marchas» , «contradanças» (Silva Leite) e « modinhas», em substituição do cravo e outros instrumentos para entretenimento de uma assembleia com dispensa de uma orquestra; era pois, então, um cordofone de sala, e o próprio Silva Leite escreveu para ele (com mais um violino e duas trompas) várias sonatas, em 1792 ; ainda hoje, alguns dos seus mais genuínos cultivadores tocam nela, a solo, transcrições mais ou menos felizes ou apropriadas de toda a espécie de música, de que, graças à sua estrutura e peculiaridades técnicas, ela exagera os valores expressivos; esse carácter, de resto, mantém-se no fado de Coimbra. Por outro lado, a guitarra usa-se muitas vezes noutros géneros musicais populares, cantares festivos ou danças, em rusgas e tunas a par de outros instrumentos porventura mais característicos e de mais velha tradição local, por todo o Pais, e especialmente para o sul do Douro".
Seja qual for a sua cronologia, a popularização da guitarra coincide certamente, em Lisboa, com a sua adaptação ao fado, que se define como um sincretismo de correntes várias, também em época não recuada , mas que já era conhecido e cantado antes disso, e que, com o seu tom menor, obrigou a uma modificação fundamental da primitiva afinação em dó maior que não dá para ele; surge assim, além daquela (e ainda outra a que chamam «afinação natural com quarta» ou «sol natural», ou «da Mouraria» - sol - mi - do - sol - fa - do (do agudo para o grave), a afinação do fado corrido, si - lá - mi - si - la - re ou sol - fa - do - sol - fa - si bemol (as três últimas em uníssono , as três últimas duplas em oitava, (do agudo para o grave), e que outros autores indicam a partir do la natural, ou «à altura que se deseje», e intervalos correspondentes para as demais cordas. De facto, a guitarra está unida ao fado apenas pela afinação especial que teve de adoptar para o acompanhar, e que de certo modo desnaturou a primitiva estrutura sonora do instrumento. Nos primeiros tempos, os próprios «fadistas» não tinham consciência da necessidade dessa ligação, e parece que, quando se divulgou o bandolim, a trocaram por ele. Mas com o aparecimento, em meados do século XIX, das grandes figuras do fado - a Severa, o Conde de Vimioso, o Hilário , etc. - , que coincidem com essa fase da sua associação à guitarra, cria-se o mito da guitarra e do fado, que ascendem aos níveis aristocráticos e literários, tomam corpo as suas feições ulteriores, define-se o tipo romanesco do fadista, plebeu ou fidalgo, e elabora-se mesmo um conceito temperamental nacional a partir dessas formas, ao mesmo tempo que se enriquecem extraordinariamente todos os aspectos musicais do fado.
A guitarra é pois, entre nós, o principal - e quase único - instrumento popular de expressão qualificadamente lírica, com total exclusão de figurações cerimoniais.
A guitarra e o fado, que gozara de um favor crescente por todo o Pais, constituem também uma das causas do desaparecimento das velhas formas da tradição regional. Por toda a parte vemos a guitarra destronar os instrumentos locais, e o fado, por muito que, com o seu carácter acentuadamente urbano, seja falho de sentido e deslocado no cenário rural do Pais, é preferido pelas gentes daí, em prejuízo dos seus velhos cantares. Violas trocam-se ou adaptam-se a guitarras, conservando a forma geral da caixa, mas substituindo-lhe o cravelhal por uma chapa de leque e aplicando-lhe seis ordens de cordas duplas. E vemo-la fazer a sua aparição mesmo nas áreas do pandeiro, do adufe, da gaita-de-foles e da flauta pastoril, de Trás-os-Montes ao Alentejo, onde a ambição de todos é acabar por arranjar uma guitarra, para nela poderem cantar, em tom menor, os seus improvisos românticos ou patrióticos.

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