segunda-feira, outubro 24, 2005

A Canção de Coimbra no século XIX
X. A presença do Fado em Coimbra
Por António M. Nunes

Os referentes do Fado de Lisboa configuram um elemento de longa duração no imaginário coimbrão associado às formas de comunicação e processos de autodefinição propostos pelos cultores da CC. Situando o problema no terreno da história das mentalidades, pode afirmar-se que do ponto de vista das crenças e representações, a História da CC se pode cindir em dois longos períodos cronológicos. O primeiro período, que designo por Identificação, vai de 1840 à década de 1920, conhecendo prolongamentos para além da última data.
Desde as origens, os cultores da CC consideram que há Fado de Coimbra, utilizam recorrentemente vocabulário importado do Fado (estilo de Lisboa), identificam-se e apresentam-se como fadistas.
O segundo período, a que chamo Rejeição, inicia-se na década de 1920, com o primeiro Movimento Modernista da CC. Os seus rostos mais visíveis, ligados às sonoridades solicitadas pelo Movimento Literário da Presença, entre eles Edmundo de Bettencourt, Artur Paredes e Afonso de Sousa, rejeitam abertamente a categoria de fadistas, o vocabulário fadístico e respectivo imaginário. Com a institucionalização do Estado Novo, a emergência da Crise Económica de 1929, e a dispersão dos instrumentistas e cantores modernistas por 1930, as representações fadófilas voltam em força. Um acontecimento aparentemente trivial, forçará os cultores da CC a um regresso ao discurso de rejeição. O motivo foi colhido no escândalo surgido a propósito do filme Capas Negras, de Armando Miranda, estreado em 1947[1].
A instrumentalização turística e ideológica proposta por Armando Miranda, a pose do actor Alberto Ribeiro, a utilização de guitarras do tipo Lisboa na pseudo casa do prego (penhores), as impossíveis serenatas na taberna onde trabalhava Maria de Lisboa (Amália Rodrigues) e junto ao tribunal onde foi julgada (cidade do Porto), motivaram iras que se saldaram na pena de rapanço de cabelo aplicada a Alberto Ribeiro e na recusa em acompanhar a fadista Cidália Moreira, aquando da digressão do Orfeon Académico ao Brasil no Verão de 1954. Estava aberto o caminho para o movimento de contestação ao chamado “fado clássico de Coimbra” e a quaisquer possíveis ligações com o Fado de Lisboa, tal qual se afirmou a produção mais radical da CC na década de 1960.
A questão da nomenclatura tradicional (“Fado de Coimbra”), remete-nos directamente para dois problemas de grande pertinência, até ao momento inexplorados: os processos individuais e sociais de construção, fixação e transmissão da memória, por um lado, e por outro, o tema da identidade da CC.
No tocante aos dois aspectos mencionados, importa relevar o problema dos suportes materiais e mentais sobre os quais foram assentando ao longo do tempo os mecanismos de transmissão do passado. Tradicionalmente, as práticas de preservação da memória mais valorizadas pelo senso comum foram os relatos orais, as memórias de antigos estudantes, as biografias mais ou menos mitificadas de artistas “memoráveis”, os testemunhos pessoalizados[2]. A História da CC tendeu a confundir-se desde cedo com vivências pessoalizadas, centradas em indivíduos paradigmáticos, ou tidos como tal, processo narrativo que se prestou aos mais diversos usos: seduzir, usufruir, encantar, autolegitimar, rejeitar, apropriar.
A “estória” da CC foi até à realização do Primeiro Seminário do Fado de Coimbra (Maio de 1978) um mero relato mítico, rememorativo, centrado sobre grandes figuras, consensualmente assente no mito fundador hilariano. Tratava-se de uma “estória” ingénua, envolta em roupagens de maravilhoso, cuja narrativa era refém do senso comum. O modelo de organização narrativa proposto pelo relato convencional era ucrónico, no sentido em que as diversas peças literário-musicais nunca apareciam datadas[3]. Pretendia-se maravilhar e encantar o público, bem como os herdeiros dos cultores, narrando de geração em geração uma “estória” virtual, com ingredientes semelhantes aos dos contos de fadas, onde não faltavam os heróis de capa e guitarra, os vilões das fífias e princesas.
A Sociedade Tradicional Académica adoptou como verdadeiras determinadas imagens produzidas sobre as origens da CC que encerram uma versão consensual de um hipotético passado. Os folcloristas designam por ecótipo estas tipologias narrativas, mais ou menos estandardizadas[4]. Uma vez padronizado o ecótipo, a comunidade hostiliza outras formas de narrativa, insistindo em repôr/manter a versão oficial.
Vejamos breve exemplo. Desde o primeiro decénio do século XX que a Academia de Coimbra atribui a Augusto Hilário a suposta autoria de Fado Hylário Moderno, na realidade um apócrifo forjado pelo tenor Manassés de Lacerda e divulgado pelo próprio em partitura e disco. A documentação disponível prova que Hilário não foi autor do espécime que tradicionalmente lhe é atribuído (foi sim autor de duas árias que refundidas e transformadas originaram o FHM). Em 1988 Divaldo Gaspar de Freitas proferiu no Arquivo da Universidade de Coimbra uma palestra que provocou brado e consternação. As ideias motrizes de Divaldo de Freitas foram publicadas resumidamente no Comércio do Porto, de 2/08/1988 (Origens do Fado de Coimbra dividem investigadores), e no Jornal de Coimbra, de 20/07/1988 (Afinal de quem é o Fado Hilário? – de Bettencourt, Manassés, Paredes ou... do próprio?). Mobilizado de imediato o rumor para contar a estória “como deve ser”, as pesquisas encetadas por Divaldo de Freitas foram desvalorizadas com “é um velhinho muito simpático, pena estar senil”.
Inexistente a cronologia, a pesquisa autoral e a contextualização epocal, ao contrário do que sucede no Tango e na Canção Napolitana, a CC era sistematicamente empurrada para a falsa categoria de folclore urbano, tipologia onde não cabe, visto não ser uma manifestação musical do povo anónimo[5]. De acordo com as interpelações avançadas por Maurice Louis, Le folclore et la dance, Paris, G. P. Maison Neuve et Larose, 1963, pág. 36, cumpre distrinçar:
-folclórico (produções, eventos e instituições específicas de certas comunidades populares);
-popular (aquilo que foi criado no povo e transmitido segundo processos anónimos ou reportando-se a um certo autor ligado ao povo: o regente de uma filarmónica que compõe uma marcha de carnaval; o ensaior de um rancho de natal que num determinado ano compõe um tema para as janeiras)[6];
-tradicional (sistema sócio-cultural onde os valores da continuidade, conformismo, estabelecem cânones sobre o presente, por forma a filtrarem as novidades e rupturas, as quais podem ou não ser alvo de integração/adaptação nos valores tradicionais);
-popularizado (canções, danças, instrumentos, textos que tendo origem não popular foram adoptados/transformados por determinadas comunidades populares)[7].

Tal rótulo parecia tanto mais consistente quanto não era habitual indicar nos relatos orais e nos registos fonográficos as autorias das peças[8]. Por conseguinte, a construção do enredo em que se foi enredando o “chamado Fado de Coimbra”, optou pela naturalização acrítica do senso comum, incapaz de qualquer verificabilidade problematizadora.
Saliente-se que nunca se efectuou qualquer prospecção de fundo aos vários sentidos que o vocábulo Fado conheceu em Coimbra, quer nos meios populares quer nos meios académicos. No entanto, a reconstrução sincrónica e diacrónica do campo semântico a que andou ligada a palavra Fado quis significar diferentes entendimentos, formas de sentir, vivências, emoções, ao longo do tempo. Assim, entre 1840 e meados dos anos de 1860, “fado em Coimbra” quis significar especificamente prática e reprodução de fados coreográficos e interpretação de fados corridos, o que não é bem o mesmo que importar e transformar localmente fados ao estilo de Lisboa.
Também nunca se abordou a questão de saber como os cultores do Fado de Lisboa viram e inteligiram o discurso semântico-estético mondeguino, tendo em conta que se trata de uma imagem exógena, construída de fora para dentro, com base num olhar simultaneamente perplexo e exótico.
Quem primeiramente inventou e articulou de forma coerente os processos narrativos exógenos, depois recorrentemente glosados pelas elites? A minha leitura privilegiará a análise e recensão de imagens produzidas a partir do exterior, sem olvidar as funções que lhe foram atribuídas: legitimar no interior da Sociedade Tradicional Académica Coimbrã uma falsa consciência de monopólio (que silencia e marginaliza os contributos e adesões futricas), por forma a reforçar a outra face de Jano do Fado de Lisboa (suposta superioridade moral e literária).
Para os menos familiarizados com os processos de construção, invenção e transmissão da memória, convém precisar que as comunidades tradicionais podem interiorizar como seus valores e esquemas narrativos inventados exteriormente por certas élites. Nestes casos peculiares, o sucesso da aclimatação depende da receptividade das elites locais aos valores importados e do sentido que revestem dentro dos quadros ideológicos regionais.
E se as fontes produzidas internamente oferecem múltiplas objecções, maiores dificuldades decorrem do acervo documental produzido a propósito da história do Fado de Lisboa que tradicionalmente se debruça sobre o considerado “bastardo” conimbricense.
Praticamente todos os curiosos, diletantes e investigadores que se lançaram na produção de histórias do Fado de Lisboa partiram da certeza inquestionável de que a CC era um sucedâneo do Fado. Um certo localismo “típico” e “pitoresco” fizera o resto. À luz dos estreitos quadros analíticos herdados do positivismo oitocentista de matriz biológica, o Fado de Lisboa mudara, pese embora sem alterar a sua substância ou essência. Da mesma forma que o oxigénio se mantinha imutável, independentemente de vir a ser maculado pela poluição, também o Fado não alterava a sua natureza enquanto produto tipificado.
Centrado o enfoque na teoria positivista dos tipos, a produção semântico-musical coimbrã nada mais seria do que mera variabilidade dentro do mesmo tipo. As “mudanças” ou “variações” assinaladas em Coimbra eram simples contingências, ou acidentes localistas, que não afectavam a essência do Fado. Daí o lugar sistematicamente dedicado ao chamado Fado de Coimbra em todas, ou quase todas, as monografias que abordam as origens e evolução do Fado de Lisboa, passando pela literatura jornalística e enciclopédias. Algures, entre o meio e a parte final dessas obras, tornou-se usual conceder algumas linhas ou páginas à questão do chamado Fado de Coimbra. Tais páginas tinham o condão de veicularem códigos embebidos de valores apriorísticos, originando um discurso consensual, repetitivo, espécie de enviesamento exótico, dado que:

-envolvia intenções explicita ou implicitamente hegemónicas, ao negar à CC estatuto estético e patrimonial autónomo, considerando que esta se subsumia exclusivamente em função do Fado de Lisboa;
-revelava desleixo metodológico, na medida em que tentava explicar um produto estético “exótico” a partir das categorias de análise específicas do Fado de Lisboa;
-confundia realidade virtual com realidade histórica, tranformando o monismo empírico e determiníscico em autoridade autosuficiente. O sucesso destas narrativas grangeou tal prestígio que no crepúsculo do século XX a CC continuava a ser olhada de soslaio, com base em metodologias, conceitos e lexemas irremediavelmente senis. Do estranho vicejo de tais ferramentas parece concluir-se que os investigadores passaram distraidamente ao lado de cem anos de renovação no campo das ciências sociais e humanas. Fará sentido continuar a abordar a CC com base nos quadros mentais e científicos do século XIX?

Alguns dos cultores da CC só demasiado tarde tomaram consciência deste olhar de soslaio. Ao entabularem formas de comunicação com o exterior, os cultores da CC nunca tiveram o cuidado de precisar se estavam a dialogar de pleno direito e em pé de igualdade, ou se aceitavam dialogar na posição de subordinados. Os cultores e admiradores do Fado de Lisboa e os investigadores e propagandistadas do Fado de Lisboa entenderam, desde cedo, que o silêncio dos cultores da CC só podia significar subordinação.
Foi então que os intérpretes da CC começaram a falar do Fado de Lisboa como género literário-musical mórbido, decandentista, espelho de grupos sociais marginais, discurso que tendeu a manter-se no tempo, mesmo quando os referentes sócio-culturais que deram origem ao primitivo Fado de Lisboa já haviam entrado em acelerada erosão.
Por seu turno, os praticantes do Fado de Lisboa, irritados com o pseudo filho pródigo que se recusava a “regressar” à casa paterna, começaram a falar de “opereta” e de “cantores de ópera”[9].
No seu radicalismo, ambos os discursos revelam informação distorcida, fruto de sensos comuns mais ou menos localizados, pesando a ausência de conhecimento aprofundado. Repetem-se as fontes banalizadas, as trivialidades que, de inoperantes, não potenciam qualquer recontextualizações de velhos e de novos sentidos.

X.1 - Dicionários, monografias, enciclopédias
As linhas mestras da construção do discurso exógeno que subsume o chamado Fado de Coimbra como produto bastardo do Fado de Lisboa começam as dar os primeiros passos em 1890, quando o musicólogo Ernesto Viera deu à estampa o Diccionario Musical, e na entrada “Fado”, afirmou que o chamado Fado de Coimbra resultou de uma transposição directa do Fado de Lisboa realizada “pelos estudantes”[10].
Este tipo de discurso volta a ser reproduzido em 1903, na História do Fado, do jornalista João Pinto de Carvalho[11]. É já no Capítulo VI, e a propósito dos cantores mais aplaudidos que Pinto de Carvalho considera Augusto Hilário um fadista “moderno”, digno sucessor da cantadeira Cesária.
Hilário considerava-se fadista e assim foi entendido pelos seus contemporâneos. Porém, Pinto de Carvalho não se atreveu a imputar a Augusto Hilário o protagonismo fundador do chamado Fado de Coimbra. Logo adiante, no Capítulo VII, dedicado aos guitarristas, Pinto de Carvalho viu-se obrigado a recuar no tempo e a citar José Dória, João de Deus, José de Oliveira Anchieta, João da Silva Matos, Manuel dos Santos Melo da Cruz e Jaime de Abreu. O autor furtou-se cuidadosamente a entrar em considerandos sobre o período anterior a Augusto Hilário, por manifesta ausência de conhecimentos. Mesmo assim, não deixou de referir a talho de foice o papel desempenhado pela viola toeira e a anterioridade do ritual de serenata em comparação com a emergência do “fado”. Pinto de Carvalho não chega a esboçar uma teoria explicativa das possíveis diferenças que então delimitariam a identidade dos dois géneros artísticos. Limita-se, na penúltima página a uma breve e acre crítica aos caminhos “descaracterizadores” que o fado vai tomando:

“Porque a música do fado se tem adulterado ou despopularizado até se transformar em serenata, em balada, ou numa espécie de passa calle lento, porque as trovas do fado se poliram como jóias (...), pretendem alguns que o fado tende a desaparecer de entre as nossas canções nacionais”.

O tom crítico esgrimido por Pinto de Carvalho em 1903 não visava apenas os fadistas lisboetas seduzidos pelos teatros, salões e serenatas dadas em Cascais, Baixa de Lisboa, Costa do Castelo, Cais das Colunas e Rio Tejo. Mais do que isso, considerava que havia “Fado de Coimbra” e que o “Fado de Coimbra” estava a ser abastardado pelos estudantes. O inventário temático, inserto em anexo à obra de Pinto de Carvalho, é bem elucidativo do grau de percepção que o autor tinha acerca do foro estético coimbrão. Tinop ordena alfabeticamente dezenas de composições, independentemente daquelas serem ou não verdadeiros fados.
A partir da monografia publicada por Pinto de Carvalho ficava aberto o caminho para a inclusão da Canção de Coimbra, e sua correlativa rotulagem como produto cultural não autónomo, em futuros estudos sobre o Fado de Lisboa.
No ano seguinte, o jornalista e escritor de origem portuense, Alberto Pimentel (1849-1925), publica A triste canção do sul. Subsídios para a história do fado[12]. Baseado no Diccionario Musical do erudito Ernesto Vieira (1890), Pimentel começa logo nas páginas iniciais por aceitar o chamado Fado de Coimbra como produto directo do Fado de Lisboa. Em 1890, Ernesto Vieira determinara dogmaticamente que no tocante à disseminação geográfica do Fado, tendo como epicentro Lisboa, aquela manifestação musical apenas se tornara popular em Coimbra-cidade.
Acontece que em 1890, o Fado chegara às mais remotas províncias portuguesas, sendo conhecido e praticado desde pelo menos a década de 1840 no Porto, lugarejos de Ovar, Penafiel, Braga, na Ilha de São Miguel, Ribatejo, em Coimbra e povoados dos arredores, na Figueira da Foz, praias da Ericeira, Cascais, Estoril, Buarcos, Granja, Póvoa de Varzim, Leça da Palmeira, termas de Pedras Salgadas e de Vizela, sem esquecer as vivendas e quintinhas aprazíveis da cidade do Funchal onde os tuberculosos continentais iam procurar bons ares. Na monumental recolha de solfas, editada em três tomos na década de 1890 pelo professor de música do Liceu da Ordem Terceira do Carmo, da cidade do Porto, César das Neves é bem explícito quanto à proveniência das recolhas remetidas pelos seus admiradores e colaboradores. Não menos importante, com escassa diferença de anos, os editores lisboeta Sassetti e portuense Eduardo da Fonseca lançaram brochuras de quiosque com fados impressos, as quais correram todo o país e chegaram ao Brasil. A par de modalidade cantável, o Fado entrara nos meios populares associado à dança (fado coreográfico). Mas isto não poderia saber Ernesto Vieira, se considerarmos o grande atraso verificado à época na recolha das expressões musicais regionais.
Pimentel considera o chamado Fado de Coimbra um produto mais tardio do que o Fado de Lisboa, para tanto invocando a arreigada tradição da viola toeira e a persistência, aliás mal explicada, de formas de tocar e de cantar ainda visíveis em José Dória e João de Deus que não se confundiam com o culto do fado tout court.
Nas páginas de meio da obra, concretamente 187-188, Alberto Pimentel sugere que o “Fado de Coimbra” é posterior à década de 1850, tendo surgido após e decadência dos antigos e apreciados anfiguris. Esta afirmação de Alberto Pimentel radica numa informação errada obtida pelo recolector junto do Bispo D. António Aires Gouveia. Chegado a Coimbra por 1850, Aires Gouveia não se deu conta da existência dos vários “fados” tocados, cantados e dançados pelos estudantes.
Entrado no Capítulo V, e a propósito dos “fados literários”, Pimentel encadeia o protagonismo fadístico de Augusto Hilário nas práticas boémio-estudantis de Luís de Almeida, antigo fadista e aluno da Escola Politécnica de Lisboa, falecido em 1872. Por défice de conhecimentos, Alberto Pimentel imputa erroneamente a Augusto Hilário a novidade dos “fados” cantados com quadras literárias, em vez do emprego de décimas ao modo lisboeta.
O raciocínio de Pimentel é facilmente reconstituível. Se Hilário foi efectivamente um fadista, também só o poderiam ser os guitarristas, cantores e compositores activos entre 1896 e 1904. Daí as referências aos nomes de Cândido Pedro de Viterbo (guitarrista-cantor), Franciso Pinheiro Torres (cantor) e outros. Avesso ao processo de aristocratização sofrido pelo Fado (estilo de Lisboa) nas últimas décadas, Alberto Pimentel enfatiza “a alta cotação litteraria” atingida pelo “Fado de Coimbra”, moldado nas redondilhas de sabor popular (o culto republicano do povo, fonte de legitimação democrática).
De acordo com o mesmo alvitrista, o chamado Fado de Coimbra conservava ainda a pureza original do fado, volvido em “hymo da desgraça” do amor e da saudade. O Fado de Lisboa esse perdera a graça original, desnaturalizado que estava desde a sua entrada nos salões e teatros, preterindo a guitarra pelo piano. O que distinguia os dois géneros, no dizer de Pimentel, era tão somente a exaltação da desgraça amor/saudade em Coimbra e a hiperbolização dos “abysmos” da miséria social em Lisboa.
As diferenças pimentelianas reduzem-se as duas hipóteses, estruturadas em tipo versus contratipo: boa literatura/má literatura (nuance literária); grupo social digno/marginais indignos.
A afirmação de Alberto Pimentel, divulgada em 1904, passou a constituir uma verdade feita relativamente à forma como doravante foi lido o chamado Fado de Coimbra pelas elites portuguesas. Primeiro, o chamado Fado de Coimbra era produto directo e inquestionável do Fado de Lisboa. Segundo, resumia-se à glosa do Amor e da Saudade. Terceiro, era o rosto puro, ou dupla face de Jano do género lisboeta que entrara em degeneração. Quarto, sendo mais lírico e mais literário, constituía o rosto digno e honesto de uma manifestação que nascera em Lisboa no interior de tudo o que a sociedade teria de mais condenável e marginal (vadios, mendigos, prostitutas, faquistas, miguelistas arruinados).
Seguindo o exemplo de Pinto de Carvalho, Alberto Pimentel também elaborou um inventário alfabético de fados, onde incluiu indistintamente diversas composições coimbrãs conhecidas até ao ano de 1904 e cançonetas sentimentais em voga que passaram a ser rotuladas de “fados” pelo simples facto de serem acompanhadas à guitarra.
O emprego genérico e redutor da palavra Fado, ao confundir e amalgamar foros estéticos diferenciados, breve concitaria dissabores aos aficcionados da CC. Os anátemas lançados contra o decadentismo vilão atribuído ao Fado de Lisboa, passavam a visar o chamado Fado de Coimbra.
As perversidades e ambivalências contidas na obra de Pimentel não se ficam por aqui. O título da obra só poderia ter nascido da pena de um nativo portuense (A triste canção do sul). O “sul” pimenteliano é de geografia incerta. Não se percebe bem se começa do Douro para baixo, do Vouga ou do Mondego. A região de entre Vouga/Mondego/Lis é geograficamente sul? Evidentemente que não. Pelo que o “sul” de Alberto Pimentel é tão somente um “sul” imaginário, psicológico, xenófobo. Este “sul” mental pressupõe, em termos de crenças pessoais, um “norte” alegre, laborioso e não patologizado. Alberto Pimentel (Porto, 1849; Queluz, 1925) não tardou a resposta. As alegres canções do norte, Lisboa, Livraria Viúva Tavares Cardoso, 1905, falam de uma geografia mental nortenha dançante, alegre, sadia. No afã de inventar o seu “norte” esfuziante, alegre, bailador, saudável, Pimentel silencia a guitarra e os fados mordidos de melancolia que se cantavam nas tascas da Ribeira portuense pelo menos desde a juventude esturdiosa de Camilo Castelo Branco. Esta leitura radicada em preconceitos ideológicos e xenófobos, conhecerá continuadores na pena de estudiosos e de alvitristas como António Arroyo (O canto coral e a sua função social, Coimbra, França Amado, 1909), Armando Leça (Da Música Portuguesa, 2ª edição, Porto, 1942. Texto original de 1918), Gonçalo Sampaio (As origens do Fado, 1923), Fernando de Castro Pires de Lima (A Chula verdadeira canção nacional, Porto, FNAT, 1962), sendo levada ao extremo por um “António Porto” em furibundo cronicão estampado em O Comércio do Porto, de 15 e 16 de Outubro de 1984.
Não motiva surpresa o facto do musicólogo e folclorista António Arroio ter proferido em Coimbra, no dia um de Maio de 1909 uma palestra intitulada “O canto coral e a sua funçã social”, Coimbra, França Amado, 1909, onde detractava violenta e genericamente o Fado. Para António Arroio, o Fado era a mais “inferior” de todas as manifestações musicais portuguesas, reveladora do atraso, inércia e inferioridade sentimental de certos grupos sociais (op. cit. pág. 79)[13].
O palestrante não se preocupou em formular qualquer plataforma de distinção entre o Fado de Lisboa e o designado Fado de Coimbra, embora possuísse sólidos conhecimentos musicais que lhe teriam permitido matizar a virulência da leitura espúria então trazida a público.
O teor reducionista e nivelador do discurso higienista apresentado por António Arroio, alicerçado numa linguagem médico-biológica onde foi colher termos próximos do anormal, patológico, mórbido, motivou um coro de iras e de repúdios. Independentemente apreciar ou não o Fado, António Arroio não estava a ser honesto. Serviu-se do seu prestígio de figura pública para condenar o Fado, tendo propositadamente silenciado os seus bons conhecimentos técnico-musicais. Clarificadas as coisas, a visão do Fado enunciada por António Arroio deve ser reconduzida à intenção que norteou o autor. Tratou-se tão somente de um alinhamento de postulados moralizadores, apostados na “regeneração” da sociedade portuguesa, e não de qualquer tentativa de apresentação de um trabalho de investigação.
O tom agressivo do discurso ideológico produzido pelos cultores e admiradores do Fado de Lisboa, crescentemente apostados na consagração do mito “canção nacional/canção do povo” breve concitou a indignação dos etnomusicólogos. Para os estudiosos do folclore português a ideologia do “fado, canção nacional” era inaceitável. O Fado de Lisboa não representava a “alma” dos minhotos, dos transmontanos, dos alentejanos, dos açorianos, dos durio-litorâneos. A resposta etnomusicológica, protagonizada por homens como Armando Leça, António ArroioPires de Lima, Gonçalo Sampaio e Rebelo Bonito, tinha consistência, pese embora a sua marca bairrista-regionalista.
Em artigo datado de 1918, Armando Leça negava veementemente, e com bons argumentos, o mito do Fado “canção nacional”[14]. Leça, mercê da sua formação no terreno da música folclórica, foi um dos primeiros musicólogos portugueses a tentar aflorar uma delimitação clara entre o “Fado propriamente dito” e aquilo que designou por “Serenata Coimbrã”. Problematizando a questão dos alegados peculiarismos entre o Fado de Lisboa e a feição mais literária do foro musical coimbrão (tese de Alberto Pimentel, 1904), Leça escrevia em 1918:

“A serenata (...) diverge musicalmente do fado.
Improvisa-se o fado no modo menor e em divisão binária simples; a serenata é mais apropriada em maior adaptável aos compassos binário e ternário simples e acolhendo mais graus harmónicos além do primeiro e quinto, únicos verdadeiros que o fado aceita”[15].

Aquando da primeira edição do livro Música Popular Portuguesa, em 1945, Armando Leça voltava a debater alguns dos problemas aflorados em 1918. Relativamente às origens da guitarra de Coimbra colocava a hipótese daquele cordofone constituir uma reactualização do guitarrão de finais do século XVIII, mencionado em 1808 por Frei Varela[16]. O autor admitia que a CC tivesse origem no Fado, atribuíndo a Augusto Hilário o processo de transição para a serenata, e concluia: “saiba-se distinguir a serenata coimbrã, do fado”[17].
Data de 1936 a obra de Luís Moita, O fado. Canção de vencidos, resultado de um conjunto de palestras demolidoras proferidas aos microfones da jovem Emissora Nacional[18]. Historiando sumariamente as eventuais origens e percursos do Fado, Luís Moita reproduz o discurso convencional e dedica alguns considerandos ao foro musical coimbrão. De acordo com Luís Moita, o Fado teve em Lisboa o seu grande centro de irradiação. De Lisboa teria sido transladado para Coimbra pelo concertista José Dória:

“O fado entrou em Coimbra graças a José Dória, versão local da Severa”[19].

Moita apoiava o seu raciocínio na biografia de José Dória publicada em 1870 por Joaquim de Vasconcelos no livro Os músicos portugueses. Julgando engrandecer a memória do artista, com quem privara e que admirara, Joaquim de Vasconcelos cometera o deslize de escrever a dado passo da biografia “o nosso fadista”. Em 1936, além de “fadista” – invólucro de todo inadequado – José Dória passara a ser na voz de Luís Moita a primeira Maria Severa coimbrã.
Continuando a explanar as suas ideias, Moita considera Augusto Hilário um fadista. Àquele intérprete se teria ficado a dever a operação de distanciação relativamente ao Fado de Lisboa[20]. Em meados dos anos trinta, a CC continuava a ser olhada como um “fado exótico”. As suposições eram adoptadas como critério de verdade. Os fadistas lisboetas olhavam os cantores coimbrãos entre desdenhosos e irritados com a atitude de recusa do suposto filho pródigo em regressar à casa paterna, falando em cantores de “ópera”[21].
Outro autor a não perder de vista, verificada sua importância perniciosa na produção de uma imagem inviesada da CC, é Rodney Gallop, diplomata britânico que residiu em Lisboa entre Março de 1931 e Setembro de 1933. Intelectual interessado no folclore, Gallop recolheu uma séria de materais sobre a música portuguesa, divulgados em 1936 (Portugal. A book of folkways, Cambridge, 1936). Discorrendo sobre o Fado, Gallop tergiversava:

“Em Coimbra, o fado tem um carácter completamente diferente. Já não é canção do povo. (...) Pertence aos estudantes, que passeiam pelas margens do Mondego, percorrendo o Choupal, e cantando sonhadoramente ao som das suas guitarras de argênteo timbre. As suas vozes de tenor, quentes e cristalinas, conferem à canção um carácter mais requintado e sentimental, isto é, mais aristocrático”.

Na tradução portuguesa da obra de Rodney Gallop, efectuada em 1937, o autor confessa ter passado em Coimbra, em cujas “ruas luarentas” teve o “prazer” de escutar “fados”[22].
Procurando esboçar eventuais distanciações entre os dois géneros, Gallop, limitava-se a sublinhar muito superficialmente uma diferença de grau, que não de género, de ordem moral e espiritual. Atitude pouco honesta num estudioso que possuindo formação musical escrevia taxativamente: “A fórmula técnica da música é a mesma em ambos os casos”. Mas seria apenas uma diferença bizantina de tipo ideal (Coimbra) e de contra tipo (Lisboa)? O que significa em bom rigor mesma “fórmula técnica”? Quererá Gallop referir-se a composições estróficas, marcadas pelo predomínio da quadra de sete versos (redondilha maior) e respectivo efeito de repetição da melodia? Bom, mas não era este o esquema mais vulgar no folclore português, de mal modo acentuado nos Açores que chega a ser difícil por vezes por vezes distinguir temas de fábrica açoriana de composições de fábrica coimbrã?
Sigamos as tergiversações esgrimidas por Gallop, já alicerçando uma visão alimentada pelo Estado Novo e interiorizada nas décadas seguintes pelos estudantes de Coimbra:

“Compare-se, e contraste-se, o ritmo flexível mas rude da fadistagem de Alfama, com o timbre sonoro e o estilo ligado do estudante das margens do Mondego. A fórmula técnica da música é a mesma em ambos os casos. Mas ao passo que em Lisboa cantam o fado os que enfrentaram a vida e por ela foram derrotados, cantam-no em Coimbra aqueles que a ela vão, cheios de juvenis aspirações e ilusões. Terra a terra no primeiro caso, é, no segundo, refinada e sobreespiritualizadamente, a expressão dum sentimento romântico, livre de quaisquer considerações materiais”[23].

Descrição romântica, superficial, mediante a qual Rodney Gallop pretende distinguir o Fado de Lisboa da CC, valorizando os cantos nocturnos, as vozes tenorinas, a serenata de rua e a implantação em estrato sócio-cultural mais elevado.
Nem todos os serenateiros eram primeiros tenores, facto que Gallop poderia ter comprovado mediante audição dos discos recentemente gravados por Armando Goes, Almeida d’Eça, António Batoque e Alexandre Resende. A sobrevalorização do qualificativo “mais aristocrático”, deve situar-se na produção de imagens da época, não passando de preconceito então utilizado recorrentemente para desvalorizar o Fado de Lisboa.
Mais grave do que tudo isto, era o insidioso branqueamento da activa prática futrica da CC, bem actuante ao tempo em que Gallop residiu em Portugal. Ignorância, desconhecimento, preconceito? Gallop instaura afirmativamente uma cultura musical dominante, a académica, enquanto desapossa violentamente a Sociedade Tradicional Futrica de uma prática cultural que também era sua.
A narrativa de Gallop, mais do que simples texto do domínio do folclórico, vem legitimar uma falsa consciência, agora convertida em ideologia oficial. Legitimando o mito de uma CC monopolizada pelos estudantes universitários, Rodney Gallop propõe-se apresentar um sistema ideológico coerente e sedutor, que sendo do interesse da Sociedade Tradicional Académica, espoliava, por meio da domesticação das imagens externas o património musical futrica.
Em meia dúzia de linhas, Gallop fazia desaparecer do mundo dos vivos Artur Paredes, Manuel Rodrigues Paredes, Guilherme Barbosa, José Lopes da Fonseca, Eugénio da Veiga, Antero da Veiga, Flávio Rodrigues, Francisco Caetano, Alberto Caetano, José Caetano, Alexandre Resende, Joaquim Ralha, e outros. Em 1936-1937, datas da publicação do livro assinado por Gallop, todos os cantores, guitarristas e executantes de violão acima mencionados pertenciam ao mundo dos vivos. Nos vários ranchos de bairro, nas Fogueiras de São João, nas récitas populares, nas romarias, nas festas da Rainha Santa, continuavam a marcar presença guitarristas, executantes de guitarradas e intérpretes de árias serenis, práticas culturais que Gallop desconhecia, ou melhor, conhecia e preferiu silenciar.
Gallop opera uma dupla demarcação da CC, ao nível externo e interno. Demarca-a explicitamente do Fado de Lisboa, lançando mão de argumentos demasiado frágeis e inconsistentes, dando continuidade a um processo iniciado na década anterior pelos modernistas coimbrãos da Presença. Demarca-a, pelo silenciamento, da sua vertente futrica. O texto de Gallop, datado de 1936, mas alicerçado em elementos anteriores, inaugura no plano das fixações escritas uma tipologia metanarrativa de rememoração que a Sociedade Tradicional Académica passará a reproduzir insistentemente.
Expulsos os futricas, a Sociedade Tradicional Académica apenas admite Artur Paredes e Carlos Paredes, abrindo ainda excepção à memória d barbeiro Flávio Rodrigues. O último passaria a nomeação obrigatória nas autobiografias dos académicos oposicionistas do Estado Novo, visto como fonte alimentadora da ideologia defensora da soberania popular.
A operação intelectual de captura da memória futrica (=popular) na década de 1930, fixada por Gallop, enuncia apenas o princípio de um tenebroso processo de esquecimento. O segundo passo decisivo do desapossamento/destruição teve lugar em Outubro de 1934, data em que o Ministro das Obras Públicas de Salazar, Duarte Pacheco, nomeou uma comissão encarregue de estudar o projecto de construção da nova “cidade universitária”. Dos vários estudos e anteplanos resultou a expropriação forçada de prédios, a transferência de moradores para as periferias, a edificação dos monumentais pavilhões universitários da Alta, e a morte simbólica de formas de sociabilidade que não lograram subsistir fora do ecossistema de origem.
Em 14 de Abril de 1943 iniciaram-se as demolições, no ângulo da Rua das Parreiras e a Rua de Entre Colégios. Da mesma forma que o diplomata Rodney Gallop não quis, ou não soube, compreender a Canção de Coimbra na sua dupla manifestação, o Estado Novo também não soube compreender a velha Alta de Coimbra e a cultura dos seus habitantes salatinas[24].
A inusitada violência simbólica que se abateu sobre a Comunidade Tradicional Futrica dos anos trinta, residente na Alta, representou um duplo crime de etnocídio: desapossamento da CC (Rodney Gallop), seguida da destruição forçada da Alta (Duarte Pacheco/Oliveira Salazar). Segundo a definição avançada pelo antropólogo Robert Jaulin, na esteira de Marcel Bataillon, (La décivilizacion. Politique et pratique de l’éthnocide, Paris, PUF, s/d.), etnocídio ou homicídio cultural constitui o processo de descivilização ou de destruição de uma civilização (Robert Jaulin, La paix blanche, Paris, Le Seuil, 1970).
Numa conferência proferida em 1935, e editada em 1938, o musicólogo Mário de Sampayo Ribeiro (1898-1966) elaborou uma extensa nota de fim de página sobre o Fado, apostado em justificar a decadência musical portuguesa vivida no século XIX[25]. É discutível que o século XIX musical português configure o decadentismo esgrimido virulentamente pelo autor. Sólido nos argumentos, erudito na pesquisa, Sampayo Ribeiro via o século XIX com os olhos desconfiados dos intelectuais do Estado Novo. Daí, a demasiado rápida associação entre decadência política, económica, musical, e a emergência do Fado. Aproveitado e instrumentalizado pelo Estado Novo, o Fado não tinha grandes hipóteses de afirmação junto dos grupos intelectuais que alinhados pelo ideário estadonovista se reclamavam antidecadentistas. Como não poderia deixar de ser, Sampayo Ribeiro nega veementemente capacidade de representação cultural nacional ao Fado, opondo-lhe a virtude e o valor da música popular[26], e criando termos de combate, de que são exemplo “fadofilismo”, “fadolatria” e “delírio fadonacionalístico”. Denunciando a sobrecarga de atenções tributadas ao Fado e aos pululantes estudos sobre a “história do Fado”, Sampayo Ribeiro anotava a pouca solidez dos publicistas e panfletaristas, aliás com inteiro acerto e pertinência:

“É igualmente desconcertante verificar que os estudos que pretendem fazer-lhe a história têm acima de tudo carácter literário e revestem aspecto puramente declamatório”[27].

Na origem do Fado estaria o lundum proveniente do Brasil. Relativamente a Coimbra o autor não corroborava a “tese” convencional da transição Lisboa/Coimbra, por via de uma mutação genética. Escorado em argumentos avançados por Pedro Fernandes Tomás, começava por salientar a não dispicienda presença de lunduns nos folclores de Coimbra e da vizinha Figueira da Foz. Desta raiz , trazida por estudantes brasileiros, brotariam os “fados-serenatas” conimbricenses:
“Ainda hoje, especialmente no folclore do distrito de Coimbra, abundam os tipos de canção provindos de qualquer dos tipos de lundum. No concelho da Figueira da Foz são dançados (trazidos pelas tripulações dos barcos da carreira do Brasil nos tempos aureos da navegação à vela); em Coimbra, na população discente universitária, são os fados-serenatas cuja origem está nos “doces lunduns chorados” que os estudantes mulatos de além mar cantavam em noites de luar sob os balcões das beldades de então”[28].

Independentemente da pertinência dos argumentos, confirma-se a forte presença de ritmos do lundum na música coimbrã de arraial, salão e serenata de rua: Lundum da Bahia, Lundum do Malhão, Lundum da Figueira da Foz, Ela por Ela, Trigueirinha, Folgadinho, Moreninha, Cavaco do Rio. Em meados do século XIX, o lundum ainda fazia tamanho furor em Coimbra que os acompanhamentos de temas como Noite Serena, Fado da Figueira da Foz e Fado Atroador lhe seguiam as pisadas.
Na década de 1940, a Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira, Volume X, páginas 823-826, dedicou alongada recensão ao vocábulo Fado. Após breve historial do Fado de Lisboa, entravam as considerações sobre o “Fado de Coimbra”. O autor praticamente imputava ao Dr. José Dória o gesto fundador, intérprete que teria transladado para Coimbra o Fado de Lisboa. De acordo com este articulista, José Dória inventara uma variante localizada do Fado, adaptado ao timbre e toques da viola toeira. O foro serenil coimbrão nada mais seria do que “uma variante” do Fado, filho directo do Fado de Lisboa, embora transformado em “fado-mazurka”, fruto da adopção de compassos ternários. As fontes do autor do artigo Fado na GEPB são Pinto de Carvalho, Alberto Pimentel, Luís Moita e José Ribeiro Fortes. Nenhum dos autores mencionados produzira estudos sobre a emergência e evolução da CC no século XIX. Os invocados compassos ternários apenas predominaram nas valsas e canções de despedida dos cursos. Nas árias de rua, os compassos eram essencialmente binários.
De referir o colectivo Dicionário de Música, em dois tomos, assinado por Tomás Borba e Fernando Lopes Graça, Lisboa, Edições Cosmos, 1956-1958. No tomo I, a páginas 485-486, os autores recenseiam o vocábulo “fado”, apodando-o de “género popular em Lisboa e Coimbra”. Relativamente ao problema da expansão, Borba e Lopes Graça alvitram a possibilidade de uma origem Lisboeta seguida de divulgação pelo território português, e tendo por agentes transmissores estudantes. O artigo mencionado é demasiado generalista e falho de pesquisa nas suas traves mestras, ressentindo-se de um pendor probabilístico que os autores não chegam a fundamentar. Isto é, as origens e percursos da CC não podem subsumir-se em função de simples conjecturas e tiradas probabilísticas. Decorre do próprio texto que os autores não efectuaram qualquer trabalho de pesquisa documental sobre a CC enquanto género musical. E o padre Thomas Vaz Borba (1867-1950) não sendo um profundo conhecedor da CC, também não lhe era inteiramente estranho, pois em 1899 colaborara na récita de despedida dos quintanistas de Direito, do curso de D. Tomás de Noronha e Afonso Lopes Vieira (“A Barca dos R. R. R.”) com uma “Barcarola” em compasso 6/8, uma “romanza” e um “fadinho”. Quanto aos agentes divulgadores, importará vincar que se afigura demasiado redutor penhorar os grandes eixos difusores de um género musical a um único protagonista. Antes de 1850 não existiam meios de comunicação como a rádio, a televisão, os discos. Mas existiam cancioneiros, partituras comercializadas em fascículos destinados ao piano, cantadores ambulantes, almocreves, regentes de filarmónicas, ensaiadores de teatros, seminaristas musicalmente ilustrados, padres de Semeinário de Coimbra com boa formação musical, professores particulares de instrumentos musicais, soldados e prostitutas.
Data de 1960 o artigo de Porfírio Rebelo Bonito, intitulado “Reflexões sobre o Fado” (in Céltica, I, Porto, 1960, págs. 21-25; idem, Correio do Ribatejo, de 2/04/1960), onde o autor se opõe categoricamente à hipótese das origens brasileiras do Fado. Propondo uma sedimentação nacionalista, assente nos ritmos da chula, Rebelo Bonito ensaiou uma classificação tipológica dos fados, cuja novidade maior se traduz na chamada às luzes da ribalta do Fadinho Ribatejano. A “tese nacionalista” expressa por Porfírio Rebelo Bonito em 1960 situava-se na linha das interpretações etnomusicológicas dos folcloristas que desde o primeiro quartel do século XX vinham a combater o processo de fadistização, assente na ideologia do “fado canção nacional”. Era o caso de Gonçalo Sampaio (Origens do Fado, in Águia nºs 9-10, Porto, 1923), Mário de Sampayo Ribeiro (A música em Portugal, Lisboa, Tipografia Inácio Rosa, 1938), e de Fernando Castro Pires de Lima (A chula verdadeira canção nacional, Lisboa, FNAT, 1962). Relativamente a Coimbra, o engenheiro e musicólogo Rebelo Bonito apenas referia muito de ricochete a CC, entendida como fado e situada na grande família do fado.
À época em que Rebelo Bonito publicou Reflexões sobre o Fado, fenómenos como o Fadinho Ribatejano, o Fado Beirão e os fados coreográficos em geral, eram praticamente desconhecidos da maioria dos intelectuais portugueses, apenas apercebidos aqui e além pelos grupos folclóricos, cujos directores artísticos e ensaiadores não iam muito além da “boa vontade” e do gostar muito das “lindas coisas da nossa terra”. Dadas à estampa em 1960, as interpelações formuladas pelo engenheiro e musicólogo Porfírio Rebelo Bonito tiveram directamente origem na campanha de recolhas de Vergílio Pereira em Cinfães (Cf. “Cancioneiro de Cinfães”, Porto, Junta de Província do Douro Litoral, 1950, sendo as recolhas de 1947). Em anotações aos espécimes recolhidos, Vergílio Pereira destacava melodias que não sendo fados em sentido estrito, comportavam células rítmicas fadográficas. Citava como exemplo a cantiga “Venho da Ribeira Nova” (op. cit., pág. 116), abordando também a subtil questão de uma chula com adornos em tercinas que teria influenciado o fado corrido (op. cit., págs. 471, 487 e 529). Embora condenando moralmente o Fado e negando-lhe qualquer valia no terreno do folclórico (op. cit., pág. 117), Pereira como que inverte/subverte os tradicionais postulados das origens do Fado, resgatando-o por via da pureza da raiz popular (as chulas).
Os modelos interpretativos ventilados por Mário Sampayo Ribeiro, Vergílio Pereira, Armando Leça e Rebelo Bonito conduziram os folcloristas à negação da narrativa centrípta lisboeta para o caso dos fados coreográficos, ritmos onde se tem querido ver contributos das chulas, do fado corrido, do lundum e dos cantos populares à desgarrada (Bertino Coelho Martins, Músicas e danças tradicionais no Ribatejo, Santarém, ADS, 1997, págs. 97-105).
Em 1964, na primeira edição de Instrumentos Musicais Populares Portugueses (Lisboa, F. C. Gulbenkian, 1964), o etnólogo Ernesto Veiga de Oliveira apresentou uma versão do fenómeno coimbrão que não mais foi alterada nas reedições de 1982 (2ª edição) e 2000 (3ª edição):

“Uma outra forma músico-instrumental muito importante nesta região, embora recente e de carácter especial, é o fado de Coimbra, fado-canção, balada ou serenata ou fado académico (de um género diferente do fado de Lisboa), cujo instrumental solista ou acompanhante se compõe, como o deste, de guitarra e violão. O fado de Coimbra assenta em conceitos de um saudosismo e de um lirismo amoroso impenitentemente românticos, que se fundiam na paisagem real e lendária da cidade, ligados à boémia académica que era a sua própria atmosfera; e é de um melodismo delicado mas menos original que o de Lisboa. Ele ouvia-se em serenatas na cidade, em certos acontecimentos académicos, inicialmente, ao que parece acompanhado à viola; e, a partir daí, pelo País fora (...). Hoje, acompanhado o declínio das formas locais características, o desaparecimento da Academia como unidade social senhora da cidade, que a marcava com o selo do seu espírito e das suas irreverências, e o descrédito dos valores românticos ultrapassados, o fado de Coimbra não constitui já uma manifestação musical livre e espontânea; as seranatas são proibidas, e as guitarradas ouvem-se apenas em determinadas celebrações organizadas”.

Ernesto Veiga de Oliveira estrutura o seu relato nas memórias do tempo em que fora estudante da Universidade de Coimbra, recorrendo complementarmente a Alberto Pimentel. Anote-se a vacilação e a oscilação do autor quanto à pertinência da expressão Fado de Coimbra, lançando mão de cinco designativos. Saliente-se o total desconhecimento da prática da CC nos meios populares citadinos e o silêncio feito sobre o Fado Beirão.
Veiga de Oliveira procura caracterizar as especificidades da CC num registo acrónico e descontextualizado, falando em “saudosismo”, “lirismo amoroso” e “boémia”[29]. Não precisa quando terão entrado as invocadas categorias identitárias no imaginário da CC, nem fundamenta até que ponto serão pertinentes. Não situa no tempo histórico-social a consagração dos instrumentos de acompanhamento do canto, assente na dupla guitarra/violão. Passa totalmente em claro o jovem e contestatário Movimento da Trova, em fase de afirmação e legitimação desde os alvores de sessenta (1960), e cujos referentes se podem comparar à brasileira Bossa Nova (desde 1956, com Jobim e outros), à movida argentina do Nuevo Tango (com Astor Piazzolla e outros), e à Nova Trova cubana (Pablo Milanês).
Num roteiro turístico e de propaganda, editado cerca de 1967, A. Martins Rodrigues (Portugal. O Fado e as toiradas, Lisboa, Publitur, s/d.), continua a reproduzir-se a prática tradicionalmente consagrada que consistia em dedicar algumas páginas ao chamado Fado de Coimbra, logo após traçar o roteiro histórico do Fado. A caminho da página 80, o autor fala do “fado de Coimbra”, com auxílio de fotografias e microbiografias de Afonso de Sousa, Artur Paredes, Elísio de Matos, Bettencourt e outros. Em plena efervescência do Movimento da Trova, Martins Rodrigues inculcava no grande público uma imagem lexical arcaica e a ideia de um repertório literário-musical praticamente cristalizado, assente nas gravações fonográficas da década de 1920.
Por 1970, e numa obra de duvidoso valor científico, Mascarenhas Barreto (Fado. Origens líricas e motivação poética, Lisboa, Aster, 1970?) segue a consagrada “metodologia” empiríca que consiste em abordar o Fado de Lisboa com ligações inquestionáveis ao chamado Fado de Coimbra. Logo na pág. 6, começa por expôr uma das ideias mais comuns à época, a qual lia o fado “como elemento do folclore português”. O raciocínio de Mascarenhas radica na instrumentalização do folclore operada pelo Estado Novo, fruto de leituras espúrias que confundiam apressadamente folclore com música tradicional de forte cunho etnoantropológico (caso da Canção de Coimbra). As afirmações-conclusões de Mascarenhas Barreto revelam-se extremanente controversas, na medida em o autor propõe, mas não prova, uma possível origem medieval/provençal para o Fado. As afirmações mais polémicas encontram-se plasmadas na pág. 14, precisamente quando Mascarenhas Barreto procura estabelecer as grandes linhas diferenciadoras entre os dois géneros artísticos:

“Oito séculos passados, o Fado actual conserva ainda as antigas características. O Fado dos Estudantes de Coimbra, como expressão do sentimento masculino, manteve o mesmo espírito das Cantigas de Amor. No Fado de Lisboa, parece predominar a forma das Cantigas de Amigo, expressão feminina, em que a mulher manifesta o seu sentir”.

Ao longo de 590 páginas, em edição bilingue (português/inglês), Mascarenhas Barreto limita-se praticamente à transcrição alongada de textos poéticos, situados entre a Idade Média e o século XX, aparentemente aptos a comprovar a medievalidade do Fado. Seria interessante dilucidar até que ponto Mascarenhas Barreto conhecia as recentes teorias explicativas surgidas em Coimbra no interior do Movimento da Trova, formuladas por Manuel Alegre após leitura de Manuel Louzã Henriques, que se tinham passado a reclamar herdeiras do provençalismo.
À semelhança das figuras de proa do Movimento da Trova, Barreto opta pela construção de um discurso empírico trans-histórico, em busca de uma nova legitimação multissecular que ignora as grandes rupturas operadas na passagem do sistema modal ao sistema tonal, a flutuação dos esquemas de dedilhação de instrumentos, a evolução das formas de vocalização, os signos identitários, a transformação dos cordofones, as diferentes formas de expressar os sentimentos. Ora, as melodias que vieram a dar corpo à CC são filhas da música tonal, mal grado a existência de uma ou outra peça singularmente considerada onde se pode detectar a sobrevivência de arcaísmos anteriores ao século XVIII.
A invocação da medievalidade em Barreto, letrista comprometido com a defesa do Fado de Lisboa, talvez se possa explicar, ainda que parcialmente, se tivermos em consideração as críticas e detracções que aquela manifestação estética passara a sofrer nas vozes dos intelectuais oposicinistas do Estado Novo. Mascarenhas Barreto percebeu o perigo que a associação Fado/Regime Salazarista representava. Daí a necessidade de um novo discurso religitimador que demarcasse o Fado do Estado Novo e lhe conferisse dignidade. Inventado na Idade Média trovadoresca e romanticamente provençal, o Fado passava a constituir uma das traves mestras da identidade nacional, posicionado a par de instituições como o Exército, os Municípios, a Universidade e a Igreja Católica. Por outro lado, Barreto distanciava-se da proclamada origem prostibular, marginal e criminosa, reforçando a costela aristocrática do Fado[30].
Tal como sucedia com a maioria dos intelectuais da época, as afirmações de Barreto não careciam, aparentemente, de qualquer esforço fundamentador. Destinavam-se ao consumo no interior de certas elites restritas, e nessa medida, irresponsabilizavam o(s) seu(s) autor(es).
A tese nuclear de Barreto consiste em tentar demonstrar até à exaustão o filomedievalismo do Fado. No caso coimbrão, este seria visível em sinais como a persistência da saudade, a continuidade das baladas trovadorescas, a aparente não presença dos fados-coreográficos e dos ritmos sincopados afro-brasileiros. Para exemplificar a sua hipótese, Barreto recorre sistematicamente a poemas da autoria de letristas do Fado de Lisboa que ao longo do Estado Novo foram produzindo e reproduzindo uma imagem coimbrã lendária, cristalizada, povoada de capas negras, luar, tricanas. Cita e transcreve Gabriel de Oliveira, Frederico de Brito, José Galhardo, Henrique Rego e outros. Trata-se de um olhar exótico, radicado na incompreensão do Outro, produzido a partir dos mitemas vivenciados pelos cultores do Fado de Lisboa e da forma empírica como gostariam que fosse oficialmente descodificada a CC[31].
O primeiro passo das teorias formuladas por Mascarenhas Barreto foi dado em 1959, com a brochura turística Fado. A canção portuguesa. Perfilhando de certa forma, a velha tese moçarabesca de Teófilo Braga, Barreto apresentava os rudimentos teóricos da origem medieval do Fado e a pseudo distinção Lisboa (cantigas de amigo) e Coimbra (cantigas de amor)[32]. Invocando os trágicos amores de D. Dedro I e Inês de Castro, com base na trilogia Amor/Violência/Morte, Barreto sugeria:

“Serenatas de amor, guitarradas saudosas, embalam Coimbra de hoje – Coimbra dos estudantes. Envoltos nas suas capas tradicionais, vagueiam à noite pelas ruas e jardins da cidade antiga, em digressões de boémia ou romagem poética. As lendas são nascente inspiradora; o rouxinol gorgeia:

Coimbra do Choupal
Ainda és capital (...)”[33].

A pseudo origem medieval da CC era “documentada” com base numa canção de teatro de revista, escrita por Raul Ferrão/José Galhardo, popularizada no filme Capas Negras em 1947. Verdadeiramente curioso nesta brochura turística era a gravura (também motivo de capa) inserta nas páginas 56-57 onde Marcelo de Morais e Fernandes Silva procuravam narrar o mito do Fado desde o Homem de Cro-Magnon até ao século XX, passando por um estudante a dedilhar guitarra do tipo de Lisboa. De repente, Mascarenhas Barreto via fados em todas as épocas da história da humanidade, sugerindo fadistas a cantar e a tanger instrumentos nas grutas de Cro-Magnon, no Egipto, na Grécia, em Roma, nos castelos medievais.
Associado a Carlos Branco, Mascarenhas Barreto volta a publicar um roteiro fotográfico (Portugal do Fado) em 1960[34]. À semelhança dos restantes, trata-se de um roteiro turístico trilingue (português, inglês, francês) e de assumida propaganda do Fado. A CC demora em ser apresentada e descodificada como uma “variante do fado”. Na introdução, e com fragmentos bebidos em Teófilo Braga e Carolina Michaellis, repisa-se:

“O Fado que durou e perdurou entronca na robusta árvore do lirismo português. É patente a sua afinidade com a poesia trovadoresca. A Cantiga de Amor, expressão do sentimento masculino, manteve o seu espírito, se não a sua toada, no Fado estudantil de Coimbra”[35].

As páginas 26 a 31 foram dedicadas a Coimbra, servindo de documentos uma quadra de Gabriel Marujo, e fotografias cedidas pelo Secretariado de Propaganda Nacional (SNI), entre elas, vista geral da cidade, Pátio da Universidade, Igreja de Santa Cruz, Choupal, túmulo de Inês de Castro, serenata na Rua do Loureiro e serenata junto a uma janela (em arquivo, para divulgação turística, desde 1953). A fotografia da serenata de cortejamento, captada em pleno dia, insinua três estudantes (cantor, guitarrista, executante de violão) namoriscando uma jovem sentada no parapeito de uma janela, numa óbvia aproximação à representação sugerida por Armando Miranda no filme Capas Negras.
A imagem produzida por Mascarenhas Barreto e Carlos Branco em 1960 pretendia ventilar a nível internacional uma determinada visão de Coimbra. Sendo, na sua essência, a forma como os fadistas de Lisboa tentavam ler o fenómeno coimbrão, era também a ideologia oficial como o Estado Novo, por intermédio do SNI, procurava reproduzir/manter uma certa imagem de Coimbra.

Em 1974, Armando Simões publicou um longo e pioneiro estudo sobre a guitarra (A guitarra. Bosquejo histórico, Évora, Edição do Autor, 1974), hodiernamente contestado em diversos aspectos por Pedro Caldeira Cabral (1982; 1999) e José Alberto Sardinha (2000; 2005). Curioso das coisas da guitarra, investigador autodidacta, coleccionador de instrumentos, Armando Simões não é considerado um guitarrista representativo de Coimbra. Natural de Lisboa (8/05/1894), o autor frequentou a antiga Escola de Regentes Agrícolas de Coimbra até 1913 (onde se iniciou na guitarra), tendo seguido carreira militar, jornalística e política (Presidente da Câmara de Gois). Apenas se lhe conhecem uma actuação no sarau da Queima das Fitas de Maio de 1943, e um espectáculo de guitarradas, usando de vários instrumentos e afinações, dado na Faculdade de Letras da UC em 18 de Agosto de 1944.
O estudo/recolha levado a cabo por Armando Simões, a partir de 1935, nunca pretendeu ser uma história da CC. É a pretexto da longa e duradoura associação fado/guitarra, que o autor decide abordar o problema, confinando-o porém a capítulo único (Cf. op. cit. págs. 185-216).
Sintetizemos:

-o autor assinala a presença de fados coreográficos na cidade e concelho de Coimbra, pormenor ignorado pela maioria dos musicólogos, à excepção de Pedro Fernandes Tomás (Velhas canções e romances populares portugueses, Coimbra, França Amado Editor, 1913, págs. XXVIII-XXIX). Classifica o Fado Beirão na categoria de “fado rural”, “singelo e cantado durante as fainas agrícolas ou danças de roda nos terreiros, mercados e romarias chamando-se-lhe, quando dançando, fado marcado. Faz parte do folclore conimbricense” (Op. cit., pág. 196). Simões não precisou, a propósito deste assunto, embora o pudesse ter feito com à vontade, que os fados coreográficos beirões – geralmente em compasso quaternário e modo maior - , revelando proximidades com aquilo a que correntemente se chama fado corrido, não estão na origem da CC.
-considera, embora não fundamente musicalmente, que o “fado de Coimbra” pertence à “raiz de todos os fados”, sendo quase exlusivamente interpretado por estudantes, revelando grande cunho de sacralidade. Esta descrição, de certa forma tributária de Rodney Gallop, não colhe sentido antes da década de 1940 e da emergência das “serenatas monumentais”. O autor sabia-o bem, pois vivera a juventude na cidade de Coimbra.
-atribui origem medieval à CC, fazendo remontar as árias serenis e as variações às trovas da corte de D. Dinis e ao período do Infante D. Pedro, Duque de Coimbra. A origem medieval da CC demarcaria as grandes diferenças em relação ao Fado de Lisboa, o último surgido a partir do lundum brasileiro (Op. cit., págs. 197-198). A afirmação é no mínimo temerária. Simões não a comprova documentalmente. Tanto não consegue documentar a hipótese formulada que se contradiz na página 209 ao afirmar que o Fado de Lisboa e a CC eram datáveis da mesma época, em virtude de o “fado-lundum” ter sido trazido para Coimbra por estudantes brasileiros (tese de Sampayo Ribeiro). Para o período controvertido, os dados disponíveis apenas sugerem dois nomes: Domingos Caldas Barbosa (século XVIII), e Henrique António Antão de Vasconcelos (década de 1860), constatação que em nada minimiza a forte presença de lunduns na música tradicional de Coimbra. Todavia, e escutados alguns lunduns presentes no folclore de Coimbra, continuamos sem conseguir percepcionar de que modo a marcação sincopada dos lunduns tem a ver com o fado, ou dizendo de forma mais óbvia, como é que do lundum se terá passado para os fados.
-distingue satisfatoriamente os toques guitarrísticos usados pelos cultores da CC, de outros empregos populares da guitarra, concretamente em romarias, arraiais da Rainha Santa Isabel e de Santo António, Fogueiras de São João, tabernas. Uma vez operada a distinção, contradiz-se, na página 211, atribuindo à guitarra a função exclusiva de instrumento de serenata estudantil.
-documenta tangencialmente a presença da guitarra nos povoados limítrofres de Coimbra, nomeadamente no concelho de Arganil. A este propósito alude ao papel desempenhado pelos construtores coimbrãos de cordofones que iam às feiras da região vender instrumentos. José Alberto Sardinha, apoiado em documentação de arquivo e em recolhas de campo, sugere que a guitarra estaria profundamente enraizada na Beira Litoral antes do século XX (Tradições Musicais da Estremadura, 2000, págs. 423-444), assinalando a presença do instrumento na Sertã, Arganil, Pampilhosa da Serra, Mealhada, Miranda do Corvo, Tentúgal, Lavos.
-opera a distinção entre a guitarra-toeira, ou guitarra-banza, de 17 trastos, e a moderna guitarra de tipo Artur Paredes com ilharga alteada, escala de 22 trastos, e som mais potente e agressivo, pese embora sem caracterizar a requinta da antiga guitarra-toeira. A requinta foi muito utilizada por tocadoras femininas, em festas de salão e romarias até à Segunda Guerra Mundial. Nos finais da década de 1990 observei uma guitarrilha tipo requinta, propriedade da antiga estudante e colega de curso de Virgílio Ferreira, Dra. Mariberta Carvalhal, que lhe fora oferecida por 1948 pelo guitarrista Abílio Ribeiro de Moura. Trazia selo de resturo da oficina de Raul Simões. Tinha boca redonda aberta, de 7 cms, oscilando a ilharga entre 6 cms (junto ao cepo) e 6,8cms (junto ao atadilho), 31 cms de largura de tampo, 44 cms de corda vibrante, escala plana de 17 pontos de latão. Apresentava ainda chapa de leque em latão, pau santo nas ilhargas e fundo, tampo superior em casquinha, voluta em buxo rematada em cabeça de cão. O som era algo abandolinado. Ainda no tocante ao historial da guitarra, Simões peca por falta de pesquisa, omitindo totalmente a presença da Guitarra Inglesa em Coimbra, hoje sinalizada sem quais equívocos desde o século XVIII, e a Cítara-Bandurra (ou guitarra popular de cravelhas de madeira).
-fornece uma ampla e muito útil lista de construtores locais e de oficinas que abasteciam o mercado coimbrão a partir do exterior.
-fixa o ano de 1870, como o da entrada da guitarra (trazida de Lisboa) na cidade de Coimbra. A informação foi colhida na obra de Armando Leça, Música popular portuguesa, Porto, 1942, págs. 122-123, a partir de Afonso Lopes Vieira, e afigura-se totalmente errada. Admitindo que as guitarras que se vieram a tradicionalizar em Portugal resultaram da evolução da cítara, ou do cruzamento da Cítara-Bandurra com a Guitarra Inglesa, como pretendem Pedro Caldeira Cabral e José Alberto Sardinha, não podem ignorar-se as alusões à “cítola” quinhentista na Comédia Eufrósina (1542). Em documentos estudantis de meados do século XVIII refere-se a Guitarra-Cítara, ou Bandurra, como lhe chama o poeta Bocage (não confundir com a Viola Beiroa, dita também Bandurra) no meio académico. Francisco da Silveira Malhão (Vida e feitos..., 4 tomos, 3ª edição, Lisboa, 1824), estudante de Leis na década de 1780 alude nas suas memórias à prática da guitarra, infelizmente sem precisar se era a Cítara-Bandurra ou a Guitarra Inglesa. Logo nos alvores do século XIX temos notícia do estudante, compositor e executante de Guitarra Inglesa, António Baptista Botelho, cujas variações recuperámos (“Variações para Guitarra Inglesa”). Alguns anos antes, em 1808, fora produzido um extenso trabalho de transcrição musical para Guitarra Inglesa (“Varias pessas para se tocar em guitarra”), umas de Manuel José Vidigal, outras de Manuel Luís, nelas se contando cotilhões, minuetos, gijas, marchas, contradanças e rondós. Num outro caderno, porventura das décadas de 1840-1850, as peças para guitarra são variações sobre a “Molinaria” de Paisiello e ainda boa cópia de valsas. Para a década de 1840 temos a extensa letra do Fado Atroador, onde se menciona a guitarra bastas vezes. Ainda para o decénio de 1840, citemos o testemunho romanceado de Arnaldo Gama (Honra ou loucura, 1936, págs. 30-31), reportado à “bandurra”. Poderíamos ser levados a pensar que Arnaldo Gama se refere à viola de arame. Porém, o romancista opera muito bem a distinção, falando em banza (viola toeira) e “bandurra”. Ora, “bandurra” era um dos termos populares já usados em Portugal na década de 1790 para designar a guitarra popular de cravelhas de madeira ou cítara. E duvidando do rigor da tradução para português, o relato do Príncipe Lichnowsky, relativo à viagem de 1842 (Portugal. Recordações do ano de 1842, Lisboa, 1946, pág. 161), assinala a guitarra em Coimbra. Para a década de 1860, Henrique António Antão de Vasconcelos (Memórias do Mata Carochas), e Júlio César Machado (Scenas da minha terra, Lisboa, 1862, pags. 110-111), assinalam a guitarra nas Fogueiras de São João da Alta, em festas nocturnas e serenatas. Em 1864, Antero de Quental escrevia loas à guitarra. Chegado a Coimbra no ano lectivo de 1861, Eça de Queirós, invocará a guitarra casualmente nos seus escritos: guitarradas no Penedo da Saudade (Correspondência de Fradique Mendes); passeatas com guitarra em noites de Abril na Ponte do Ó e no Choupal (“José Matias”, in Contos). Os estudantes contemporâneos de Eça de Queirós, José Simões Dias (As Peninsulares, 3ª edição, 1876), e João Penha (Por montes e vales, 1899), referem explicitamente a guitarra na década de 1860. A historiadora Irene Vaquinhas veio chamar a atenção dos investigadores para uma fonte inexplorada, os processos judiciais dos tribunais das comarcas de Coimbra, Montemor-o-Velho e Penacova, remetidos ao Arquivo da Universidade de Coimbra (Violência, justiça e sociedade rural. Os campos de Coimbra, Montemor-o-Velho e Penacova de 1858 a 1918, Porto, Afrontamento, 1995). Assim, numa madrudada de Janeiro de 1898, quatro homens, entre eles, Manuel (ferreiro, casado, 31 anos), e Manuel (sapateiro, casado, 31 anos), sairam em descantes satíricos na aldeia de Cernache, com viola e guitarra, tendo difamado Albertina (Op. cit. pág. 348). No domingo de 15 de Julho de 1888, dois trabalhadores, um criado de servir e um lavrador, com idades compreendidas entre os 21 e os 28 anos, residentes na Pedrulha, deslocaram-se à Adémia, tocando guitarras e cantando cantigas ofensivas, o que originou grave desordem. Thomaz Borba, frisava em 1907 que o violão e a guitarra eram os instrumentos mais popularizados na Beira Litoral (“Dansas e cantos populares da nossa terra”, in Illustração Portuguesa, Lisboa, Volume IV, 23/12/1907, pág. 836).
-o trabalho assinado por Armando Simões apresenta diversos erros de datas e nomes.

As visões intelectuais polarizadas sobre o Fado como produto repugnante e condenável código da desgraça (Lisboa), ou signo de dignidade sócio-cultural (Coimbra), vicejaram nos mais diversos nichos da sociedade portuguesa. O militar e folclorista natural da Ilha de São Miguel, Tenente Francisco José Dias, verberava em Cantigas do Povo dos Açores, Angra do Heroísmo, 1981, tendo como horizonte o Fado Furado (espécime coreográfico da Ilha de São Miguel), a sua condenação explícita do Fado de Lisboa, classificado de “chocante” e inaceitável.
Francisco José Dias escrevia, posicionado num registo de negação do Fado de Lisboa enquanto hipótese de “canção nacional”. O Tenente Francisco José Dias (1907-1980) norteava-se pela proposta XI, elaborada em Junho de 1965, no final do 1º Congresso Etnográfico e Folclórico de Braga. Os congressistas presentes negaram veementemente o “carácter nacional” do Fado, classificaram-no de género mórbido-decadentista contrário ao revigoramento da “raça” e inclinaram-se para a sua expulsão das balizas do folclore. À maneira dos intelectuais da sua geração, Dias não deixava de confrontar o negativo (Lisboa) com o positivo (Coimbra). Algo inseguro no travejamento do discurso, Francisco José Dias falava em “Canção Amorosa dos Estudantes” e “Canção de Coimbra”. O léxico empregue por Francisco José Dias constitui uma novidade terminológica na voz de um folclorista. O autor não deixa de ilustrar a forma como a CC passara a ser descodificada fora da cidade de Coimbra, enquanto discurso estético produzido e monopolizado por estudantes. Este discurso, radicava num processo de apropriação desenvolvido a partir da década de 1930, fazendo tábua rasa sobre as serenatas futricas masculinas, as serenatas fluviais das tricanas e dos futricas, a sólida tradição das guitarradas populares, a interpretação de “fados” em diversas récitas populares havidas a partir de finais do século XIX nos teatros do Colégio da Trindade, Borras, Avenida e Sousa Bastos.

Em 1979 veio a público a Grande Enciclopédia Básica Alfa, Lisboa, Publicações Alfa. A páginas 224-225 reproduz-se acriticamente a teoria das “modalidades” assinada por Frederico de Freitas. Uma vez individualizado o Fado-Serenata, este radicaria nos “temas amorosos” e no “grande lirismo”.
De algum modo enquadrado no contexto restauracionista de finais dos anos setenta e balbuceios dos oitenta surge em 1982 Fados e Canções de Coimbra. Compilação de José Ribeiro Morais (Porto, S/E., 1982). A obra, destituída de índice, condensa 219 títulos em 161 páginas. Trata-se de uma colectânea de letras organizada por um cultor da CC activo no Porto. Não parece correcto atribuir a esta antologia a designação de “cancioneiro de Coimbra”, pois ali pululam e se amalgamam uns 35 textos e títulos que jamais foram cultivados em Coimbra. Um cancioneiro, seja ele meramente literário, ou literário-musical, deve obedecer a um mínimo de predicados metodológicos. Entendo por “cancioneiro literário de Coimbra” o conjunto diferenciado de textos produzidos e vividos localmente, e ainda aqueloutros de proveniência exterior que foram assimilados localmente. A par do “cancioneiro de Coimbra” existem outros cancioneiros, cabendo distinguir: produções concretizadas por cultores activos no Porto, em Lisboa e noutras localidades, que sendo de inspiração coimbrã, não traduzem as vivências psico-culturais e sócio-humanas coimbrãs; produções de origem coimbrã transpostas para comunidades ou grupos exteriores, que respeitando minimamente as melodias, procedem a transformações de vulto nos títulos e letras originais das obras literário-musicais.
Na “nota prévia”, o autor indica como fonte primacial da recolha a discografia à época disponível no mercado, dando conta das muitas “contradições” quanto a autorias, observadas de registo fonográfico para registo fonográfico. Uma chamada de atenção que não evitou a derrapagem do autor para um procedimento com foros de “tradição” em quase toda a discografia coimbrã e extracoimbrã. Concretizando, a adulteração sistemática de títulos, o estropiamento de letras, a modificação discricionária de melodias a pretexto de “arranjos”, o atropelo recorrente dos direitos de autor, são moeda corrente.
Ainda no prefácio, Ribeiro de Morais queda-se num curioso texto sobre “o que se diz do fado”, organizado segundo o esquema narrativo introdutório das estórias infantis. Perfilhando a crença nas origens remotas e no moçabarismo (Teófilo Braga), o autor alinha pela velha teoria das “modalidades”, onde caberia “o Fado de Coimbra (em forma de balada)”. O que significa etnomusicologicamente “fado de Coimbra em forma de balada”? Defende também o monopólio estudantil da CC e a correlacta ideia do elitismo cultural que lhe daria corpo (como que levando esta leitura às últimas consequências, os seus seguidores passariam a falar descontextualizadamente em “Fado Académico”). Seguidamente, guinda-se para o relato oficioso da fundação hilariana. O texto remanescente do prefácio é de pendor onírico e turístico, convocando o Amor e a Saudade. Por fim, sonega-lhe capacidade evolutiva, com um categórico “não sofre alterações, nem melhoramentos ou arranjos, mesmo com a intenção de enriquecê-lo. Então deixaria de ser o Fado de Coimbra (...)”[36].
As crenças invocadas pelo autor, resumidas no parágrafo anterior, afiguram-se vulneráveis. Radicam em ideias feitas. Por seu turno, a visão fixista da CC, enunciada em 1982, ressente-se de um conjunto de representações conservantistas e romantizadas, construídas sobre Coimbra ao longo do Estado Novo. Conjunto de representações onde deambulam fantasmáticas “tricanas”, o Hilário-Severa, vielas[37]. A ideologia subjacente à obra encontra-se resumida no poema extracoimbrão “Dois fados da guitarra”, onde, um pouco na esteira do filme Capas Negras se estabelece um pretenso confronto entre o Fado de Lisboa e o dito de Coimbra para se rematar com um “final feliz” (op. cit. págs. 153-154).
A par das perplexidades enunciadas, outros reparos suscita Fados e Canções de Coimbra, em particular:
-mistura aleatória de temas do Fado de Lisboa com árias da Canção de Coimbra, servindo de exemplo “Fado Hespanhol” (pág. 12), “Fado Franklin” (pág. 14), “Fado da Severa” (pág. 44. Apenas a letra é de fábrica coimbrã, embora entre a versão local e a proposta do recolector se notem discrepâncias insanáveis), “Fado dos Dois Tons” (pág. 147). Quanto ao “Fases do Amor e da Lua”, indevidamente atribuído a António Menano, a música é bem ao estilo de Lisboa;
-temas de feitura exógena, por certo de inspiração coimbrã, mas não assimilados nem cultivados localmente: “Sonho de um estudante” (pág. 9), “Balada do desejo” (pág. 10), “O amor de estudante” (pág. 30), “Tricana do Mondego” (pág. 30), “Carta de amor” (pág. 32), “Sofrimento” (pág. 33), “Balada” (pág. 38), “Sereia que me chamava” (pág. 41), “Os teus olhos meu amor” (pág. 42), “Fado da mocidade” (pág. 50), “Fado Hilário” (pág. 51), “Coimbra ao luar” (pág. 52), “Tricana” (pág. 55), “Os olhos do meu amor” (pág. 58), “Adeus Coimbra velhinha” (pág. 59), “Rainha do Choupal” (pág. 62), “Trova de Coimbra” (pág. 64), “Canção de Natal” (págs. 72-73), “Matar saudades” (pág. 74), “Balada da Aldeia” (pág. 75), “Canção das algas” (págs. 78-79), “Moleira dos meus cuidados” (pág. 80), “Vela branquinha” (pág. 82), “Cartas de amor” (pág. 83), “Prece” (pág. 99), “Rosas santas” (pág. 101), “Rio de águas claras” (pág. 111), “Noites de luar” (pág. 113), “Violino na rua” (pág. 114), “Ganhar o pão” (pág. 132), “Coimbra de sempre” (pág. 145), “Dois fados da guitarra” (págs. 153-154), “Giestas” (pág. 157), “Figueira da Foz” (pág. 158). Uma vez que o recolector não indica as fontes fonográficas de onde extraíu as letras, e porque estas são difíceis de obter ou se encontram esgotadas, torna-se difícil descortinar as autorias, cronologia e proveniência geográfica dos temas inventariados nesta alínea;
-canções não coimbrãs, com origem na música ligeira portuguesa, no cinema, no teatro opereta: “Canção de Coimbra” (pág. 68), “Fiandeira” (pág. 155. Gravada por Luís Piçarra), “Giestas” (pág. 157), “Meu Alentejo” (pág. 159. Gravada por Luís Piçarra);
-transcrição passiva de títulos estropiados. Apresenta-se o título original, seguido da modificação vulgar entre aspas: Fado Maria/”Fado Manassés” (pág. 11, repetido na 45 e na 149 com variantes letrísticas); Fado do Meu Menino/”O meu menino” (pág. 13); Fado da Praia/”Fado das Praias” (pág. 13), Balada/”Canção balada” (pág. 18), Fado Alentejano/”Fado Alentejo” (pág. 31), Rezas à noite/”Reza à noite” (pág. 35), Balada do Encantamento/”Encantamento” (pág. 36, repetido com o título de “Fado de Encantamento” na pág. 106), Triste/”Não rias da miséria” (pág. 39), Balada do estudante/”Rosa negra” (pág. 40), Fases do amor e da lua/”Fases da lua” (pág. 48), Balada do Outono/”Águas do rio” (pág. 49), Fado da despedida/”Não podes negar-me um beijo” (pág. 54), Mágoas de amor/”Nuvens brancas” (pág. 54), Fado Hilário Moderno/”Fado Hilário” (pág. 56), Ao cair da tarde/”Balado de Florêncio” (pág. 60), Solitário/”Perguntas-me o que é morrer” (pág. 60), Menina e Moça/”Coimbra menina e moça” (pág. 63), Recordações/”Fado da capa” (pág. 64), Fado de Santa Cruz/”Igreja de Santa Cruz” (pág. 65), Minha barca/”A barca da vida” (pág. 66), Cantares do Penedo/”Fado do Penedo” (pág. 69), Fado do Mondego/”Quando os sinos dobram” (pág. 70), Senhora do Almotão e Senhora da Póvoa/”Senhora do Almurtão” (pág. 70, repetido na 100 com variantes), Olhos verdes/”Olhos verdes gaiatos” (pág. 87), Fado do Alentejo/”Cereja vermelhinha” (pág. 101), Canção do Alentejo/”Toada Beirã” (pág. 105), Fado das minhas penas/”As minhas penas” (pág. 107), Soneto/”Fado da carta” (pág. 108), Fado do VI Ano Médico (de) 1962/”Saudades de Coimbra” (pág. 109), Adeus Sé Velha/”Sé Velha” (pág. 110), Adeus a Coimbra/”Uma noite de luar” (pág. 111), Fado da Despedida do 5º Ano Jurídico de 1912/”Fado triste” (pág. 117), Rendilheira/”Canção da Rendilheira” (pág. 120), Fado d’Anto/”A Cabra da velha torre” (pág. 122), Fado Rezende/”Ao morrer os olhos dizem” (pág. 123), Fado do Alentejo/”Maria” (pág. 123), Minha Mãe/”Oh minha mãe” (pág. 124), Toada Beirã/”Eu vi a Amélia” (pág. 127), Canção da Beira Baixa/”Toada Beirã” (pág. 141), Balada da Despedida do VI Ano Médico de 1958/Balada da Despedida 1958 (pág. 142), Fado dos Passarinhos/”Passarinho da Ribeira” (pág. 144), Fado dos Olhos Claros/”Olhos Claros” (pág. 146), Canção dos Malmequeres/”Fado dos Malmequeres” (pág. 146), Desalento/”Rosas brancas” (pág. 150, repetição da pág. 46), Fado das Penumbras/”Fado da Penumbra” (pág. 150), Fado do Mondego/”Quando os sinos dobram” (pág. 151. Repetição na 70), Fado da Sé Velha/”Moça da aldeia” (pág. 152);
-temas multiplicados, criando a falsa ideia de se tratarem de composições diferentes: Fado Maria (págs. 11, 45 e 149); Fado dos Passarinhos (págs. 11 e 144), Fado da Sé Velha (págs. 12 e 103), Fado do Alentejo (págs. 16 e 123), Fado da Mentira (págs. 16 e 121), Fado do Sonho (págs. 19 e 104), Fado de Santa Cruz (págs. 20 e 102), Canção das Lágrimas (págs. 21 e 151), Balada do Encantamento (págs. 36 e 106), Triste (págs. 39 e 131), Desalento (págs. 46 e 150), Fado Hilário Moderno (págs. 51 e 56), Menina e Moça (págs. 63 e 121), Senhora do Almotão e Senhora da Póvoa (págs. 70 e 100), Doce Entendimento (pág.s 141 e 118), Fado do Alentejo (págs. 101 e 123);
-letras estropiadas por aprendizagem de outiva, má dicção dos cantores, adulteração propositada. Inspirada em sugestões de Paul Zunthor (La lettre et la voix, Paris, Seuil, 1987), Vera Lúcia Vouga apresentou uma interessante digressão sobre as formas de transmissão oral de textos da CC no Primeiro Congresso Português de Literaturas Marginais, realizado em Abril de 1987[38]. Colocando a tónica nos esquemas de transmissão mais vulgarizados – a aprendizagem de outiva - , Vera Lúcia Vouga destaca produções autorais adulteradas, reinventadas, adaptadas, conforme o gosto dos intérpretes. O processo tende a assentar em esquemas tradicionais, de certo modo análogos aos expedientes empregues nas comunidades rurais. Daí a pertinência de uma “literatura coimbrã” ou de inspiração paracoimbrã marginal à “literatura instituição”[39]. No entanto, uma tal constatação não constitui alibi para atitudes de autêntica predacção, falsificação e contrafacção de autorias. Sem pretender ser exaustivo, exemplificarei estropiamentos significativos colhidos ao longo das páginas organizadas em 1982 por José Ribeiro Morais.
Logo no Fado Manassés (pág. 11) ocorre adulteração no 4º verso da 2ª quadra (O grande amor que te dei/”O grande amor que eu te dei”), seguido de variantes na transcrição da página 149. Em Fado dos Passarinhos, há adulterações nos 2º e 3º versos da 2ª quadra (pág. 11), com variantes na página 144[40]. No Fado do Meu Menino (pág. 13), registam-se corruptelas no 2º verso da 3ª quadra, pois do poema de António Correia de Oliveira seleccionado por Menano o que se canta na matriz fonográfica é “Diz a morte: ai nem o quero”. Carta da Aldeia (pág. 15), com letra de José Marques da Cruz, está gravemente estropiada. Citem-se apenas “De contar-te a amosidade”, vertido em “De contar-te a novidade”, e “Ai adeus!”, que passou a “Ai deus”. No Fado do Alentejo (pág. 16), Afonso Duarte teria dificuldades em reconhecer “Quem passa, que vá com Deus!”, convertido em “Quem anda, que vá com Deus!”. No Fado do Bussaco (pág. 17), Raimundo Bulhão Pato escreveu “Da aurora quando nasceste”, e não “D’aurora quando nasceste”. No Fado do Sonho (pág. 19), repetido com variantes na página 104, o 1º verso da 2ª quadra propõe “Oh! Trovas por mim sonhadas”, e não “Oh! Trovas por mim roubadas”. O mesmo se passa no 3º verso da 3ª quadra, onde “Porque a pedra movediça” passou a “Porque a pedra mondiça”. No dito Fado Novo, repete-se um erro sistemático no 3º verso da 2ª quadra escrita por Virgínia Victorino: “Sei que há quem morra de fome”, vertido em “Sei cá quem morra de fome”. Na Canção das Lágrimas (pág. 21), repetida na 151, verifica-se estropiamento do 2º verso hipérmetro original da 2ª quadra, “A ocultar faces tão belas”, reduzido “A sulcar faces tão belas”. De qualquer das formas há clara confusão entre a composição da página 21 e a da página 151, pois o chamado erradamente Fado das Lágrimas é na realidade o tema Ó Águia, muito anterior a Armando Góis. Também se verifica adulteração no 3º verso da 1ª quadra, com “Deixai-as lá ir embora”, vertido em “Deixemo-las ir embora”. No soneto de António de Sousa (pág. 22), “Em certa noite branca de luar” aparece reduzido a “Em certa noite de luar”. O 1º verso de Dobadoura, escrito por António Sardinha (pág. 24), é “A dobadoira gira, gira, gira...”, e não “A dobadoira alegre, gira, gira...”. Aliás, a matriz protagonizada por Luís Goes já não respeitava integralmente o soneto original. Eduardo Tavares de Melo (Incerteza, pág. 29) escreveu “Se és a luz que me alumia” (o que se lê é “ilumina”), e “Se és graça que me dá vida” (lê-se “Se és a graça...”). A 2ª quadra do Fado do Alentejo (pág. 31), repescada em Silva Tavares, sugere “Tanto a desgraça me alcança” (transcreve-se “Tanta desgraça me alcança”). No 3º verso da 1ª quadra da composição “O que mais me prende ao mundo” (pág. 31), a redondilha popular diz “É que a noite, de esquecida”, e não “Esse lá fica esquecido”. Em Crucificado, Francisco Bastos de Oliveira Matos não escreveu “Rosários são” (Rosários dos meus desejos), “A cruz é abrir-me” (A cruz é abrires-me), “De desejo” (De desejos, estou cansado). Em Alegria dos Céus, José Campos de Figueiredo escreveu “Venha a nós a tua graça”, embora se leia “Venha a nós a sua graça”. No tema À meia noite ao luar, a versão literária coimbrã não coincide integralmente com a transcrição presente na página 37. Em Morena dos meus abrolhos, João de Oliveira Anjo poetou “Oh! Fugitiva visão”, que não “Ou fugitiva visão”. Balada do estudante (pág. 40) inicia as adulterações logo no 1º verso da primeira quadra: “Capa negra, rosa negra” (lê-se “Rosa negra, rosa negra”), “Abre-te bem nos meus ombros” (“Abre-te bem nos meus olhos”), “Como, ao vento, uma bandeira” (“Como o vento na bandeira”). Em Desalento (pág. 46), Afonso de Sousa escreveu “Se eu morrer deixa o caminho”, e não “Se eu morrer beija o caminho”. Nuno Guimarães teria dificuldade em reconhecer a 2ª estrofe de Fado da Vida (pág. 46): “Dai-me Senhora” (”Nossa Senhora”), “Uma flor da cor da neve/ Se a morte vem/ Passe ao longe” (“A morte vem, passa longe”), “Se a brisa vem/ Não a leve” (“A prisão vem ao de leve”). O mesmo Nuno Guimarães não escreveu exactamente o Anjo Negro estampado na página 47. A primeira quadra de Mar Alto, interpretada por Bettencourt, vocaliza “Fosse o meu destino teu”, que não “É esse o destino teu”. Ainda no mesmo Mar Alto, Bettencourt autoria e vocaliza no 3º verso da 2ª quadra “Num sólio azul te adormentas”, rematando com “E a soluçar, nuncas voltas” (a vulgata é “Ao céu azul que atormentas”, ou pior, “Num céu azul te adormentas”, seguindo-se “A soluçar nunca voltas”, ou “A solução nunca voltas”). Continuam as adulterações no Fases do Amor e da Lua (pág. 48). Graça de Deus (pág. 53), de António Sardinha, gravada por Luís Goes é constituída, por duas estrofes, sendo notório o erro formal de transcrição. Mágoas de Amor (pág. 54), além das inversão da ordem de quadras, converte “Cautela não te aborreça” em “Cautela não te aborreças”, “A mágoa do nosso amor” em “Com o nosso querido amor”, “Que a vida quando começa” em “Que a nossa vida começa”, “É por um grito de dor” em “Sempre num grito de dor”. Na 2ª quadra, “As núvens brancas são almas” (lê-se “asas”) “Do anjo do meu amor” (“Dos anjos do meu amor”), “Quando por mim vão rezar” (lê-se “Que às vezes vão rezar”). No Fado Hilário Moderno (pág. 56), citem-se “Não a quero por mortalha” (“Hei-de a levar comigo”), “A minha capa ondulante” (“A minha capa ambulante”), “Não é capa de estudante” (“É a capa de estudante”). No tema Saudades de Coimbra (pág. 56), António de Sousa concebeu “Ó Coimbra do Mondego”, e nunca “A Coimbra é do Mondego”. Feiticeira (pág. 57) também não respeita a letra original de Ângelo de Araújo. A letra original de Fado dos Busos (pág. 58), cantada por Armando Góis nada tem a ver com a variante transcrita, esta adoptada por José Paradela de Oliveira num registo de 1960. A letra de Solitário (pág. 60) apresenta inversão da ordem das quadras. A transcrição de Fado de Santa Clara (pág. 63) corresponde à variante de João Barros Madeira, com monosprezo autoral de Lucas Rodrigues Junot. A letra de Fernando Rolim para Recordações, pág. 64) não coincide em termos de texto e de título. A letra de O Sol anda lá no céu (pág. 69) nasceu torta, e na transcrição continua a não respeitar a apropriação concretizada por Carlos Dinis de Figueiredo Júnior. Cantares do Penedo claudica no título e na letra (“Desde que ouviu” passa a “Por ter ouvido”; “Que eu lá deixei ao meu bem”, passa a “Que lá deixei ao meu bem”; “E o Penedo, tão velhinho”, converte-se em “O penedo tão velhinho”). A letra de Senhora do Almotão não foi correctamente transcrita, falhando nas páginas 70 e 100. No Fado da Ansiedade (pág. 71), Martinho Nobre de Melo idealizou “Quem dera que fora assim” (lê-se “Quem me dera que fora assim”). A 2ª quadra proposta para Solitário (pág. 71) não pertence à composição. No Fado do Fim do Ano (pág. 81), a memória de Afonso Lopes Vieira continua a reclamar legítima autoria. Olhos Verdes (pág. 87) apresenta pequenos estropiamentos na 1ª e 2ª quadras. Em Asas Brancas (pág. 92), vê a 1ª estrofe de quatro versos reduzida a três, com adulterações. Notam-se substanciais adulterações na 2ª quadra de Não olhes para os meus olhos (pág. 106). Soneto, de Ângelo de Aráujo, não apresenta a forma de soneto e a letra comporta estropiamentos. A letra de Adeus Sé Velha (pág. 110) não só não é de Carlos Figueiredo como não respeita o original. Em Adeus a Coimbra (pág. 111), Edmundo de Bettencourt jamais escreveria “A minha capa é um fronho” (Minha capa aos ombros ponho), ou “Só que ainda deixei-te sempre” (Quem te deixa é que sente). Na página 115 a versão original de Ângelo de Araújo (Santa Clara) não corresponde à transcrição, o mesmo valendo para a inversão de texto e adulterações perpetradas sobre o sonetilho de Manuel Gomes Meleiro (entre outros, o “Adeus aulas”, vertido em “Adeus águas pesadelo”). Fado Serenata (pág. 119), nunca se intitulou Trova Popular, embora se admita Raparigas, como também corre. A letra transcrita não corresponde inteiramente à versão do autor. Continuam as adulterações no tema Balada do Entardecer (pág. 119), particularmente no 3º verso da 1ª quadra, 2º verso da 2ª quadra, 4º verso da 2ª quadra. A letra escrita por Ângelo de Araújo para Rendilheira (pág. 120) anda longe do que foi transcrito. No Menina e Moça (pág. 121), a 1ª quadra pretende ir ao encontro da versão António Menano, mas o que se acha transcrito é exactamente: “É preciso ter por sina/E ter por amor chorado/P’ra compreender o sentido/E ame a tristeza do fado”. E a 2ª quadra não colhe melhores resultados. Fado Rezende (pág. 123) contém adulterações que Manuel Laranjeiro nunca chegou a escrever. Os temas presentes nas páginas 124 e 125 (Minha mãe, Balada do Mar, Olheiras Negras) ressentem-se de falta de rigor literário. Em Samaritana (pág. 126) campeiam vulgarizações, entre elas “Plebeia de Sicar”, convertido em “Que lhe veio adocicar”[41]. A letra de Toada Beirã (pág. 127) não respeita minimamente a ordem original sugerida por Luís Goes e comporta adulterações. A letra de Augusto Gil, incrustada arbitrariamente por António Menano em Fado do Largo de São João de Almedina (e não das Fogeiras, conforme se pretende!) não se acha conforme o original, salientando-se no estribilho a conversão de “Cá dentro tivesse voz” em “Cá dentro vive entre nós”. Fado da Nora (pág. 133), de Armando Góis, não respeita a letra de José Marques da Cruz. Destaque-se no 2º verso da 2º quadra “A melopeia da nora”, transformada em insólita “A maluqueira da nora”. No Fado das Andorinhas, João Carlos Celestino Gomes não escreveu “Atirar saudades foram”, mas “Se as tuas saudades forem”. Minho Encantador, de Felisberto Passos, surge adulterado, com destaque para “Há-de ser nosso noivado”, vertido em estranho “P’ra mo guardar bem guardado”. A letra de Fado dos Olhos Claros (pág. 146) não respeita a escrita de Edmundo de Bettencourt. Canção dos Malmequeres, da pena de António Boto, apresenta adulterações no 4º verso da 2ª quadra e no 4º verso da 3ª quadra. Moça d’Aldeia (pág. 152), variante de Fado da Sé Velha, é um texto de Américo Durão, aqui fortemente estropiado (vide “Amei-te só de me olhares”, que passou a “Amei-te soube melhor”).
-a antologia de textos publicada em 1982 por José Ribeiro de Morais conheceu 2ª edição sob o título Colectânea de fados e canções de Coimbra, Porto, Almeida & Leitão, Lda., 1998, com prefácio do então Presidente da Associação dos Antigos Estudantes de Coimbra no Porto, António Moniz Palme. O prefácio desvela bem as crenças e representações do prefaciador a propósito da Canção de Coimbra. Com ligeira melhoria no tocante à inventariação de títulos, uma ou outra tentativa de identificação autoral, mais cuidado na transcrição dos textos, a obra continua a ressentir-se globalmente das lacunas anteriormente apontadas.

No Dicionário Enciclopédico da História de Portugal, Volume I, Publicações Alfa SA, 1985, página 237, procede-se à recensão do termo Fado, apontando o lundum brasileiro e o elemento coreográfico como origens. Instalado em Lisboa, na sequência do regresso da corte, do Fado de Lisboa teria derivado o chamado Fado de Coimbra. O Fado propõe diversas modalidades, sendo as mais conhecidas o fado corrido, o fado-marcha, o fado-canção e o fado-serenata (teoria de Frederico de Freitas). Deste último teria derivado o de Coimbra, “inconfundível, expressando temas amorosos, por vezes de grande lirismo”.
Em 1986 veio a lume o Tomo VIII da Moderna Enciclopédia Universal, edição Círculo de Leitores/Lexicoteca, cuja página 95 reserva uma entrada ao vocábulo Fado que suponho ser da autoria do compositor e musicólogo Filipe de Sousa. O artigo, constituído por um total de 34 linhas, segue o formato tradicionalmente aceite como válido. O autor começa por considerar o Fado uma “canção urbana portuguesa cultivada em Coimbra e, sobretudo em Lisboa”. Logo de seguida utiliza 25 linhas para historiar sumariamente as origens do Fado de Lisboa, sua evolução e figuras carismáticas. Termina, dedicando 9 linhas à CC:

“Em Coimbra o fado apresenta características diferentes. É cantado por estudantes universitários em jeito de serenata e o tema das suas letras parece não estar ligado aos problemas do quotidiano e aos azares do destino (fado), tãos comuns no fado lisboeta. Torna-se mais espiritual, mas conservando o mesmo cunho de tristeza. O seu mais famoso compositor-intérprete foi > Hilário (1864-1896)”.

Para o autor da rencensão supra-mencionada, a CC continua a ser lida inquestionavelmente como um produto exótico, directamente derivado do Fado de Lisboa. As diferenças entre um e outro estariam nas letras utilizadas. Persiste a velha confusão entre “fado” e ritual de serenata, ignora-se a prática activa deste produto cultural no interior da Sociedade Tradicional Futrica, continua-se a invocar a mais valia do “espiritualismo” à maneira de Alberto Pimentel. A escolha da figura mais representativa recai de novo e só em Augusto Hilário, nomeação que implicitamente parece reconfirmar o mito da paternidade-fundação. Continuam ausentes novos e fundamentados informes, a prospecção sócio-cultural, a periodização, a distrinça entre vários movimentos ou micro-identidades da CC, a identificação de outras figuras bem mais importantes e fecundas do que Hilário, a evolução da tocata de acompanhamento, a análise das temáticas, o esforço de caracterização dos gostos e sentimentos, o tratamento dos fundos melódicos. Convenhamos que caracterizar 146 anos de História da CC em 9 linhas era tarefa difícil.
Com textos de João Inês Vaz (Coordenador do Gabinete de História e Arqueologia de Viseu), e Júlio Cruz (Vereador do Ambiente e Qualidade de Vida, Viseu), editou em 1989 a Câmara Municipal de Viseu a brochura Augusto Hilário. Alma do fado coimbrão. Breves apontamentos. A ordem do discurso situa-se na esteira da tradição viseense produzida desde 1896 pelos relatos jornalísticos e memória celebrativa de algumas homenagens ocorridas na cidade (6/05/1964, 30/06/1979, 1/1171987, 28/11/1988). O opúsculo não é propriamente um trabalho historiográfico, podendo considerar-se uma colectânea de poemas, fotografias, textos e recortes de imprensa. O vocabulário utilizado é directamente transladado do Fado de Lisboa (fado, fados, fadista, fadistas), com demasiadas cedências ao maravilhoso e ao lendário.

De 1989 é a recensão Fado, inserta na Enciclopédia Visual, Lisboa, Culti-Lusa/Sociedade Editorial Limitada, Tomo III, página 885. A referência a Coimbra é pobre e distorcida, apontando-se o ano virtual de 1888 para a invenção do “fado-serenata” hilariano.
Situa-se no mesmo registo ideólogico das obras anteriormente citadas, sejam elas de feição turística, jornalística, enciclopédica ou de tendência historiográfico-positivista, o volumoso livro de Eduardo Sucena, Lisboa. O fado e os fadistas, Lisboa, Editorial Vega, 1992. Em conformidade com o teor da matéria sintetizada no título, Eduardo Sucena propõe-se historiar o Fado de Lisboa. Porém, à semelhança dos publicistas, alvitristas e investigadores que o precederam e instauraram a longa tradição das histórias do Fado de Lisboa com olhares de soslaio ao chamado Fado de Coimbra, Sucena nada acrescenta às narrativas convencionais. Como escreveu o psicanalista Jacques Lacan, Eduardo Sucena, ao invés do processo investigativo, “deixa-se falar” pelo léxico do senso comum e pelas descrições tradicionalmente aceites como válidas. A obra, por vezes facciosa, e carregadamente positivista, conheceu reedição em 2002 e recebeu o Prémio Municipal Júlio Castilho de Olissipografia 1992. Na 2ª edição, de 2002, o autor dedica um capítulo a “O Fado de Coimbra”, corroborando a velha ideia do transplante Lisboa/Coimbra por via do agente único (estudantes). Apresenta breve sinopse de cultores e algumas das letras mais consagradas em clássicos que não vão além da década de 1920. Por fim elogia a produção de Carlos de Figueiredo/Tertúlia Rua Larga, condena os movimentos artísticos contestatários da década de 1960 e remata apostrofando a evolução sofrida pela CC após 1960, e bem assim todos os esforços teóricos, investigativos e estéticos apostados em superar a velha nomenclatura e respectivos suportes mentais.

Em 1994, o International Institut for Traditional Music (Berlim), em cooperação com o International Council for Traditional Music (Unesco), lançou no mercado internacional o livreto-CD Musical Traditions of Portugal, numa recolha-selecção coordenada pela professora da Universidade Nova de Lisboa Salwa El-Shwan Castelo-Branco. O CD inclui amostragens recolhidas em Miranda do Douro (Bragança), Monsanto (Beira Baixa), Cuba (Alentejo), Coimbra, Apúlia , Riachos (Torres Novas) e Viana do Castelo. Nalgumas situações, as recolhas foram obtidas junto de grupos folclóricos.
A amostragem seleccionada para ilustrar a vasta região da Beira Litoral limita-se à cidade de Coimbra. Como se tal reducionismo não bastasse, o livreto de acompanhamento não opera qualquer distinção entre a música tradicional de Coimbra enquanto expressão do povo e a música tradicional de Coimbra na sua vertente de CC. Uma lacuna desta natureza, em se tratando de uma edição de circulação internacional bilingue, presta-se a confusões irreparáveis. A música folclórica de Coimbra, representada por um espectro de largas dezenas de espécimes, antecede cronologicamente a CC. Nem só de “guitarradas” e serenatas viveram os naturais da cidade e os estudantes. Onde estão o Vira, a Farrapeira, o Ai Gabriel, a Padeirinha, o Abracinho, o Ladrão, o Manuel Ceguinho, o Estalado, a Giga, as cantigas das lavadeiras, os cânticos religiosos da natividade, os romances populares, as modas das Fogueiras de São João? Onde estão os cordofones tradicionais, anteriores à emergência da guitarra toeira, com suas anatomias, toques e timbres? Onde estão os “fados beirões”? “Musical Traditions of Portugal” limita-se a apresentar quatro guitarradas interpretadas pelo quarteto de António Portugal/António Brojo: Bailados do Minho, Variações em Ré menor, Valsa para um Tempo que Passou e Dueto Concertante. Indicam-se os autores (Antero da Veiga, Artur Paredes, António Portugal, António Brojo), mas não as datas das composições, na continuidade de uma narrativa ucrónica, pretensamente “sem tempo” ou situada “fora do tempo” sócio-cultural.
Salwa Castelo-Branco avança e sanciona o conceito de Canção de Coimbra, género tradicional em que se integram as guitarradas. Acrescenta a autora que as guitarradas configuram “uma tradição perfomativa lírica integrada na vida académica”, da qual são protagonistas estudantes, professores da Universidade e antigos alunos. A afirmação poderá ter sentido para o final do século XX, que não para o seu início, sob pena de ficarem inexplicáveis e ininteligíveis artistas como Antero da Veiga, Alexandre Resende, Gonçalo Paredes, Artur Paredes, Carlos Paredes, Manuel Paredes, Flávio Rodrigues, Fernando Rodrigues, Guilherme Barbosa, José Trego, Augusto da Silva Louro, Francisco Caetano e outros. Mais adiante escreve que o “desenvolvimento da canção de Coimbra remonta à segunda metade do século XIX, altura em que o fado e a guitarra de Lisboa foram introduzidos em Coimbra por estudantes vindos da capital”.
Estas afirmações, colhidas na obra de Armando Simões (A Guitarra: 1974) não se afiguram inteiramente correctas. Seja como for, Salwa Castelo-Branco continua a adoptar a narrativa tradicional da filiação directa Fado de Lisboa/Guitarra versus Fado de Coimbra/Guitarra. Aceita, no entanto, a teoria do sincretismo de origens regionais, reafirmada nos primeiros Seminários do Fado de Coimbra (1978 e anos seguintes).
Contrariamente à teoria monogenista (Fado de Lisboa versus Fado de Coimbra), a teoria sincrética é poligenista, na medida em que propõe como determinantes fundacionais elementos colhidos no Fado de Lisboa, na opereta e na música tradicional portuguesa. O ponto fraco deste modelo explicativo, é justamente o da música tradicional portuguesa. Atente-se no facto de os seus proponentes não invocarem o contributo fundador e decisivo que foi o da música tradicional de Coimbra anterior ao advento da CC, mas sim “a música tradicional trazida pelos estudantes oriundos de várias partes do país”.
Quem forjou a teoria da “origem nas canções regionais trazidas para Coimbra pelos estudantes oriundos das várias regiões”? Tal hipótese surge lentamente em finais do século XIX, com João Arroyo e o seu Orfeon (1880), onde eram interpretadas canções folclóricas devidamente harmonizadas para 1º e 2º tenores, barítonos e baixos. Continua e adensa-se, mais tarde, durante a regência de António Joyce no Orfeon Académico, tansitando definitivamente para as crenças dos cultores da CC. Na década de 1920, Bettencourt escuda-se neste modelo explicativo por manifesta necessidade de justificar e de legitimar o seu próprio repertório. Campeante nos relatos orais, a teoria foi apresentada pelo poeta e antigo estudante em Agosto de 1946 (Bettencourt) ao então aluno da Faculdade de Letras da UC, João José Falcato. Falcato publicou parte da conversa havida com Bettencourt na crónica “O fado de Coimbra é uma balada”, vinda a lume no periódico Linhas de Elvas, edição de 25 de Outubro de 1952. O mesmo texto voltaria a ser republicado por João Falcato na revista Portugal Ilustrado, de 4 de Novembro de 1955, e ainda no livro Coimbra dos Doutores (1957). A teoria gozava de prestígio suficiente na década de 1950, tendo sustentado parte da produção repertorial do Coimbra Quintet e justificado uma percentagem do repertório preparado em 1956 para as famosas gravações madrilenas de Março de 1957[42]. No texto de acompanhamento encomendado para o invólucro do long play ao estudante de Medicina Manuel Louzã Henriques, e editado em 1958, o leitor podia escolher entre a hipótese da origem medieval e o empadão folclórico. A teoria das origens regionais encontrava-se definitivamente enraizada quando o cantor e advogado José Paradela de Oliveira a repetiu em longa entrevista ao Diário de Lisboa, de 28 de Abril de 1966[43]. Por mais sedutora que se perfilhe, a teoria de uma eventual origem assente na soma de contributos da música regional portuguesa é uma falácia. O trabalho de investigação desenvolvido está longe de corroborar um século XIX coimbrão assente na recepção/reelaboração de melodias transmontanas, minhotas, alentejanas, açorianas, madeirenses. Como também não sanciona, ao nível da tocata, a entrada de bombos, gaitas de foles, clarinetes. A CC, nos seus primórdios, resulta, e muito mais do que se adivinhou, do encontro das cançonetas e modinhas de salão, e das árias operísticas, com a música tradicional de Coimbra. Os contributos das tradições musicais regionais portuguesas são um elemento tardio, descontínuo, meramente contigente em todo o processo de sedimentação e evolução da CC. Não constituem nem a sua origem nem a sua espinha dorsal. Para rematar este assunto, clarifique-se que a teoria da origem na “música regional portuguesa” sofreu diversas e subtis formulações ao longo do tempo. Em Antero da Veiga, Bailados do Minho e Chula do Douro podem considerar-se retalhos tardo-românticos da “alma do povo”. No mesmo autor, Bailes Regionais Portugueses I e II, Miscelânea de Cantos de Águeda, Rapsódia em Lá Maior, Rapsódia em Lá Menor, Erva Cidreira do Campo (Miscelânea da Beira Baixa), Grande Romaria (Rapsódia em Ré Maior), Miscelânea Nº 2 de Cantos da Beira, traduzem ecos superficiais da estética eclética Romântica (tipo Palace-Hotel do Buçaco, de Manini, 1888, ou do Palácio da Pena), bem como da pintura etnográfica naturalista de Silva Porto e José Malhoa. Pode dizer-se que a CC também teve os seus “pintores” de costureirinhas, procissões, pastores serranos, bordadeiras, ceifeiras e fiandeiras. Os resultados nem sempre são brilhantes, arriscando os simpatizantes um lote de “guitarradas” do tipo “empadão com todos”. O comprometimento dos resutados é fruto das limitações da guitarra em afinação natural, com predomónio da melodia sobre a harmonia, e da recolha/adaptação de canções populares que sendo agradáveis à outiva não vão além do sol-e-dó[44]. Já o “folclórico” dos presencistas, sendo ainda de lastro etnográfico, incorpora uma leitura marxista da cultura popular (filtrar e regenerar).
A abordagem formulada em 1994 por Salwa Castelo Branco encerra um certo esforço no sentido de romper com a velha “cortina de ferro” em que se conteve e se contentou durante longas décadas a abordagem da CC. Mesmo assim, a autora citada, continua a sugerir o impasse quando no glossário do livreto regista em termos paradoxais:

“Canção de Coimbra: a lyrical performance tradition integrated within the academic life of the medieval university of Coimbra, including vocal and instrumental genres, namely: fado, balada, and guitarrada.”
“Fado: a performance genre with two distinct traditions: Lisbon and Coimbra. (Cf. Salwa El-Castelo Branco, Musical Traditions of Portugal, 1994, SF40435).

No âmbito do projecto Lisboa Capital Europeia de Cultura 1994 organizou-se no Museu Nacional de Etnologia a exposição documental, iconográfica e sonora Fado. Vozes e Sombras (Lisboa, de 14 de Julho a 31 de Dezembro de 1994). Deste evento resultou a produção de um catálogo ricamente ilustrado, coordenado pelo antropólogo Joaquim Pais de Brito (Fado. Vozes e Sombras, Lisboa, ELECTA, 1994), onde pela primeira vez os esforços indagadores sobre a história do Fado de Lisboa são travejados sem recurso à CC.
Logo no texto de abertura, Joaquim Pais de Brito opta pela distanciação/separação entre os dois géneros semântico-musicais (Cf. Fado. Vozes e Sombras, Lisboa, ELECTA, 1994, pág. 24):

“Mas também o fado se espalhou pelo país, adquirindo novas colorações, ao ser dançado um pouco por todo o Centro e Norte, acompanhado pela concertina ou pela harmónica de boca, com contornos mais coloridos, alegres e diurnos. Talvez seja o caso onde ele se fixou com o mesmo nome, a cidade de Coimbra – e que na origem revela grandes proximidades em termos musicais e de execução instrumental com Lisboa - , onde o fado menos exprime relações de identidade com o quadro tradicional oral que é o pano de fundo da nossa identificação desta forma de expressão popular, pois ali ele foi apropriado por um grupo social perfeitamente definido, corporativamente organizado – os estudantes da academia - , depurou-se liricamente, tanto na vertente literária das palavras cantadas, como no modo de expressão vocal, e de espacialidade que pressupõe – exterior, abarcante - com os consequentes efeitos na projecção da voz, tudo contribuindo para se organizar mais como texto lírico do que como canção narrativa. Daí, o fado de Coimbra, que alguns autores opinam mesmo não dever ser designado como fado, separar-se do objecto da nossa própria reflexão”.

Saudando o pioneirismo de Joaquim Pais de Brito, porquanto inaugura no mundo das reflexões produzidas por docentes do ensino superior uma nova atitude, não podemos deixar de escalpelizar alguns reparos ao conteúdo do texto: a) Pais de Brito continua a perfilhar, ao arrepio de qualquer esforço problematizador, a velha narrativa olissipocêntrica que concebe a cidade de Lisboa como único centro irradiador/exportador do Fado; b) o autor reproduz passivamente a “teoria” monogenista que lia o chamado Fado de Coimbra como sucedâneo directo do Fado de Lisboa; c) invoca uma “origem” reveladora de grandes “proximidades” musicais e de execução instrumental, origem essa que não situa nem no tempo, nem no respectivo contexto sócio-cultural e musical. Somos levados a supor que a aludida “origem” queira significar Augusto Hilário e a década de 1890, argumento de todo improcedente; d) classifica a CC na categoria de género estético académico, silenciando as práticas continuadas e adesões historicamente comprovadas no interior da Sociedade Tradicional Futrica; e) continua a invocar o argumento distintivo assente na “depuração lírica”, cunhado em 1904 por Alberto Pimentel; f) alude tangencialmente às “novas” teorias que interrogam o foro musical coimbrão como um não fado, pese embora sem esboçar qualquer vertebramento lexical e conceptual apropriado.

Em 7 de Abril de 1994 institui-se em Lisboa a Academia da Guitarra Portuguesa e do Fado, com sede na Avenida Almirante Reis, 127, 1º Direito, com o objectivo de proceder à “recolha, o estudo e a divulgação de documentos da guitarra portuguesa e do fado”[45]. No documento produzido pela Comissão Directiva são enunciadas cinco directrizes, visando terrenos de actuação ligados à recolha de documentação escrita e sonora, realização de colóquios, edição de “livros e discos”, produção de espectáculos, inventários fonográficos.
Integravam a primeira Comissão Directiva Luís Filipe Penedos, Fernando Seixas, José Anjos de Carvalho, Pedro Caldeira Cabral e Gilberto Grácio. Entre os sócios fundadores, e ligados de alguma forma ao foro semântico-musical mondeguino, encontramos os nomes de Teotónio Xavier (guitarrista), Paulo Jorge Soares (guitarrista), António Bernardino (cantor), António Sutil Roque (cantor), Augusto Camacho Vieira (cantor), João Moura (guitarrista), Jorge Tuna (guitarrista), Luís Goes (cantor), Fernando Neto (executante de violão) e Durval Moreirinhas (executante de violão).
Sem pretender interpelar o mérito das intenções que presidiram à fundação da Academia da Guitarra Portuguesa e do Fado em 1994, a análise criteriosa dos “objectivos estatutários” suscita-nos algumas perplexidades.
Clarifiquemos:

-a intenção excessivamente hegemónica que persiste em ler a CC como uma migração regional gerada a partir do Fado de Lisboa;
-o emprego de uma base vocabular inadequada à pesquisa, sistematização e apresentação de projectos de trabalho sobre as origens, evolução, consolidação e divisão interna da CC;
-a não assunção da CC como parceiro dotado de identidade autónoma e diferenciada, com quem importaria dialogar em termos de uma “história comparada”, sendo que a tal propósito deveriam ser interrogadas outras manifestações literário-musicais epocalmente marcadas como a Canção Napolitana, a Modinha, o Jazz, o Flamenco, o Chorinho Brasileiro, o Tango, o Samba, a Morna, a par de certos peculiarismos detectados na Música Tradicional Portuguesa, entre eles o fenómeno mal estudado dos Fados Coreográficos, o Fado Beirão e a vertente de serenata descortinada em apreciável amostragem de modas açorianas;
-a produção de um discurso monolítico sobre a ideossincrasia dos cordofones, apresentados como artefactos indiferenciados. Reporto-me à expressão “guitarra portuguesa”, muito em voga desde a década de 1960 com Carlos Paredes. “Guitarra portuguesa” revela-se um conceito abstracto dificilmente operante, porquanto nega a multiplicidade de anatomias, afinações, timbres e toques que este cordofone assumiu e assume em Portugal. Ora, os dados da investigação histórica e os cordofones preservados em museus e colecções praticulares demonstram cabalmente que em Portugal não existiu apenas um tipo de guitarra. A tentação dos conceitos abstractos, prosseguida em nome de uma cientificidade apetecida pode conduzir ao logro cultural, visível, por exemplo na recensão “guitarra”, oferecida pela Moderna Enciclopédia Universal, Volume 9, Lisboa, Lexicoteca/Círculo de Leitores, 1986, página 264. Ao percorrer a referida entrada, o leitor fica convencido de que a guitarra de Lisboa é o único modelo existente em Portugal. Símbolo maior de um património cultural que é a CC, a Guitarra de Coimbra, distingue-se em autenticidade, originalidade e singularidade. A sua defesa em termos patrimoniais, por forma a reconhecê-la como bem de interesse cultural local, em nada afecta a livre utilização deste instrumento. Permite, no entanto, refrear certas contrafacções, verificadas em violeiros que têm vindo a substituir a lágrima da voluta da Guitarra de Coimbra por cabeças de cães esculpidas. Enxertar uma cabeça de cão na voluta da Guitarra de Coimbra, com propósitos manifestos de comercializar uma “guitarra de tipo Porto”, é uma fraude grosseira, para mais em se conhecendo com rigor que a cidade do Porto também produziu um tipo de guitarra diferente dos que se tradicionalizaram em Lisboa e em Coimbra. Sendo inteiramente legítimo utilizar a Guitarra de Coimbra para fins musicais alheios à música tradicional de Coimbra, o paradoxo mantém-se, dado que o instrumento mesmo quando descontextualizado não perde as suas características regionais.

Ainda em 1994 veio a público o livro Fado. Dança do Brasil. Cantar de Lisboa, da autoria de José Ramos Tinhorão, Lisboa, Editorial Caminho, 1994. Saudado pelos investigadores do Fado de Lisboa como um importante passo em frente no domínio da investigação sobre aquele objecto, a hipótese da origem coreográfica brasileira foi posta em causa por José Alberto Sardinha (“Tradições Musicais da Estremadura”, Vila Verde, Tradisom, 2000, pág. 365 e nota 374; idem, “Tunas do Marão, Vila Verde, Tradisom, 2005). Ou seja, dos dados mais actualizados da pesquisa, disponíveis em 2000, não era ainda suficientemente claro se o Fado havia iniciado os seus percursos como simples canto ou se promanara de um lote de modas cantadas com coreografia e mandador. Para aquilo que efectivamente nos interessa, os fados batidos ou coreográficos abundam na Beira Litoral, sendo certo que a sua audição não comprova que tenham estado na origem do chamado Fado de Coimbra.
Retornando à obra de Tinhorão, o autor baseia-se nos dados de 1904, avançados por Alberto Pimentel, para aflorar muito epidermicamente o caso coimbrão. Na realidade, o ensaio de Ramos Tinhorão não estuda nem pretende estudar a CC. Só a refere, a talho de foice, e para reforçar a expansão nacional apontada ao Fado de Lisboa. De acordo com Tinhorão, pela década de 1870, o Fado ter-se-ia divulgado por todo o país graças ao “burguês de Lisboa e ao estudante de Coimbra” (op. cit., pág. 101). Aliás, entre 1870 e 1874 o Fado aventurara-se numa vertente “mais literária”, seduzindo estudantes em Lisboa e Coimbra (op. cit., pág. 103). O raciocínio expresso por Ramos Tinhorão em 1994 é o mesmo formulado em 1904 por Alberto Pimentel no capítulo “Fados de nomenclatura/Fados literários” (A triste canção do sul, 1904, pág. 187 e ss.). Procurando filiar Augusto Hilário na corrente olissiponense dos “fados literários”, Alberto Pimentel dera como exemplo o estudante Luís Filipe Ferreira de Almeida Melo e Castro (1844-1872), fadista, cantor e guitarrista, aluno da Escola Politécnica de Lisboa, precocemente falecido. Não subsistem dúvidas quanto ao facto de os fados do estudante lisboeta Luís de Almeida terem feito furor nos meios estudantis da capital. O que Alberto Pimentel não diz é que Fado Mecânico, Fado Químico e Fado Matemático, eram autênticos fados de Lisboa no estrito sentido musical do termo. Nem sequer se podem filiar na tendência então observada em alguns fadistas de Lisboa para comporem temas destinados a rondas (serenatas), muito em voga em Lisboa e nas praias de Cascais, Estoril e Ericeira.
Luís de Almeida pretenso precursor de Augusto Hilário não passa de uma analogia forjada por Alberto Pimentel, e posteriormente glosada de forma acrítica. A CC já existia antes de Augusto Hilário e antes de Luís de Almeida se ter matriculado na Escola Politécnia de Lisboa, corria o dia 15 de Outubro de 1859. Como tal, carece de qualquer fundamento fixar a década de 1880 para a emergência “do fado do tipo Coimbra” com Hilário (Tinhorão, op. cit. pág. 105), até porque na década de 1880 Hilário não passava de um aplaudido actor de teatro amador. A proposta de leitura sufragada por Tinhorão assenta em velhos postulados dogmático-monológicos, repetidos ao longo de décadas, facilmente refutáveis: a) quem toca guitarra é fadista; b) a guitarra é única e exclusivamente um instrumento do Fado (está definitivamente provado que a guitarra de tipo Lisboa, vulgarmente designada em Portugal Continental, nas Ilhas e nos antigos territórios de Angola e Moçambique por “guitarra de fado”, era usada simultaneamente nas províncias para acompanhar regularmente música folclórica. José Alberto Sardinha gravou-a e fotografou-a em muitas terras, pela década de 1980, mantendo na construção rústica a escala de 17 trastos); c) se os fadistas de Lisboa cultivaram e realizaram serenatas, então idênticos ingredientes foram repetidos em Coimbra.

O musicólogo Frederico de Freitas (1902-1980) autoriou uma entrada sobre “Fado” na Enciclopédia Luso-Brasileira de Cultura, Tomo 8, Lisboa, Editorial Verbo, 1969, colunas 259-265, a qual passou a constituir obra de referência acrítica ao longo das décadas seguintes. Este mesmo artigo veio reeditado em Enciclopédia Luso Brasileira de Cultura, Tomo 8, Lisboa, Editorial Verbo, 1996, páginas 259 a 266. Freitas considera a existência de várias modalidades ou subgéneros fadísticos. Segundo Frederico de Freitas, o chamado Fado de Coimbra é inquestionável, tendo sido seu directo criador-inventor o estudante Augusto Hilário. Escorado na teoria das “modalidades”, Freitas considera que o “Fado-Serenata de Coimbra” configura uma simples variante dentro do grande tronco do Fado, a par de outras como o Fado-Marcha, o Fado-Balada e o Fado-Nocturno. Os autores sugeridos por Frederico de Freitas são Alberto Pimentel, João Pinto de Carvalho (Tinop), Ribeiro Fortes, Luís Moita, Armando Leça, João do Rio, Renato de Almeida e Mário de Andrade. Ou seja, Frederico de Freitas cita passivamente aqueles autores que desde 1903 tinham começado a consagrar uma imagem consensualmente reproduzida e aceite como critério único de verdade sobre as virtuais origens da CC. Ao contrário do que pretende Frederico de Freitas, a História da CC começa muito antes de Augusto Hilário e o Fado-Serenata é apenas um dos seus vários subgéneros constitutivos.
A comunicação-síntese dada à estampa por Frederico de Freitas em 1996 resultou de textos elaborados em 1969 e na década de 1970[46], publicados com maior desenvolvimento em 1984 nas actas do Colóquio sobre Música Popular Portuguesa. Conclusões e Comunicações (O fado, canção da cidade de Lisboa: suas origens e evolução, Lisboa, INATEL, 1984, págs. 9-24). Neste texto, Frederico de Freitas insere o chamado Fado de Coimbra na fase três da periodização do Fado de Lisboa (década de 1880), altura em que aquele género musical percorre novas esferas de sociabilidade e conquista espaços anteriormente indisponíveis (praias, termas, teatros, o Paço Real). Recorde-se muito brevemente que a cronologia avançada por Freitas a propósito do caso coimbrão é de todo improcedente.

Na sequência das entradas enciclopédicas, não podemos ignorar a referência consagrada no Grande Dicionário Enciclopédico Ediclube, Volume VIII, Alfragide, Ediclube, 1996, página 2.560. O articulista apresenta o Fado como canção típica de Lisboa, negando-lhe carácter de “canção nacional”. Ligeiramente diferente, seria o Fado de Coimbra, cantado por estudantes nas suas serenatas. Musicalmente “pobre”, e com letras glosando “amores infelizes e saudosos”, remata o autor:

“Do Fado de Coimbra, cantado sobretudo em estilo de serenata pelos estudantes, deve reconhecer-se que nunca atingiu a difusão do Fado de Lisboa. Com temas amorosos e de grande simplicidade musical, o seu primeiro intérprete e autor terá sido Hilário (...)”.

Do relato escalpelizado, retenhamos:
-a espessa persistência do mito fundador hilariano;
-o relato trans-histórico, generalista e acrónico;
-a desfiguradora redução da CC ao ritual da serenata de cortejamento amoroso;
-a leitura desactualizada, cerzida a partir de elementos do primeiro quartel do século XX;
-a reiteração do monopólio artístico estudantil;
-o estigma da “pobreza musical”, não exemplificado nem comprovado pelo articulista. Na CC há efectivamente melodias singelas e melodias musicalmente elaboradas. Como rotular de “pobre” aquilo que não se estudou?.

A CC, proposta na categoria de género literário-musical autónomo foi alvo de tratamento destinado a circulação internacional por Salwa El-Shawan Castelo Branco, na obra “Voix du Portugal”, Paris, Cité de la Musique/Actes du Sud, 1997. O capítulo VI desta monografia, num total de 13 páginas, aborda o fenómeno da Canção de Coimbra, estruturado em introdução, La chanson de Coimbra, Guitarradas, Esquisse historique et principaux interprètes, La balada (Cf. op. cit., págs. 105-117).
A autora começa por justificar a pertinência do designativo Canção de Coimbra, termo genérico apto a englobar subgéneros musicais do tipo canção, balada, guitarradas, e operar satisfatoriamente a distinção entre os estilos de Lisboa e de Coimbra.
Nas guitarradas, não chega a clarificar a diversidade do repertório, tradicionalmente assente em valsas, tangos, marchas, polcas, contradanças, jotas, passe-calles, canções populares, rapsódias, etc., nem alude à prática dos instrumentais realizados na viola toeira e pelas tocatas de tipo tuna.
Quanto ao esboço histórico, perfilha a narrativa tradicional (o Fado foi levado de Lisboa para Coimbra; o transplante ocorreu na segunda metade do século XIX; a CC resultou da adaptação/evolução local realizada a partir do Fado de Lisboa, da naturalização do estilo vocal da opereta ligeira, e da transformação de canções regionais trazidas para Coimbra pelos estudantes).
Na génese do modelo explicativo apresentado por Salwa Castelo Branco confluem e refluem as narrativas forjadas desde finais do século XIX e inícios do século XX, e ainda a comunicação apresentada por Manuel Louzã Henriques aos Seminários do Fado de Coimbra. Para Louzã Henriques, adepto da teoria do sincretismo, deveriam considerar-se determinantes das origens da Canção de Coimbra, o Fado de Lisboa e as canções folclóricas trazidas pelos estudantes oriundos das várias províncias portuguesas (Cf. “A tradição e a mudança”, in O Jornal, Novembro de 1982).
Um dos propósitos enunciados por Salwa Castelo Branco, logo na introdução de Voix du Portugal, era apresentar uma amostra internacional da música tradicional portuguesa, entendida numa plataforma de diversidades sócio-culturais e geográficas. No tocante a Coimbra e à Beira Litoral, pode afirmar-se que o objectivo não foi atingido, pois a CC não representa a Beira Litoral, e no caso coimbrão configura apenas um segmento da música tradicional da cidade e arrabaldes[47].

No crepúsculo do século XX, o erudito e conceituado Pedro Caldeira Cabral publicou alongado trabalho sobre a guitarra (A Guitarra Portuguesa, Alfragide, Ediclube, 1999). Situado na esteira de Armando Simões (A guitarra, 1974), mas corrigindo dados anteriores e avançando novas e substanciais pistas, Caldeira Cabral aborda e caracteriza com desenvoltura as eventuais origens, afinações, técnicas de dedilhação, construção, repertórios, usos e funções das guitarras conhecidas em Portugal.
Ao contrário de Armando Simões, que propunha origem britânica setecentista e disseminação geográfica por via da cidade do Porto, Caldeira Cabral aponta para uma presença mais ancestral, com proto-origens na cítola medieval e na cítara da renascença. Aliás, a teoria da origem britânica da guitarra não é da autoria de Armando Simões. Fora anteriormente apresentada por António da Silva Leite (Estudo de guitarra, Porto, 1796, pág. 25), Michel Ângelo Lambertini (Chansons et instruments, renseigments pour l’étude du folk-lore portugais, 1902; Primeiro núcleo de um Museu instrumental em Lisboa, Lisboa, 1914) e pela professora do Conservatório de Lisboa Maria Antonieta de Lima Cruz (História da música portuguesa, Lisboa, Editorial Dois Continentes, 1955, pág. 184). O ângulo de análise formulado por Caldeira Cabral é corroborado pelo etnólogo José Alberto Sardinha (Cf. “Tradições Musicais da Estremadura”, Vila Verde, Tradisom, 2000; idem, “A Guitarra Portuguesa na tradição rural”, in A Guitarra Portuguesa. Actas, 2002, págs. 117-122). E também o é para o caso dos estudantes de Coimbra, pois documentos anteriores a 1800 invocam a guitarra a guitarra inglesa, embora seja menos precisos quanto à presença da guitarra-cítara ou guitarra-bandurra de fabrico rústico, com o seu cravelhame de madeira. Porém, este modelo investigativo tem sido alvo de vigorosas e acres críticas: Rui Vieira Nery (prefácio) e Manuel Morais (“A Guitarra Portuguesa das suas origens setecentistas aos finais de século XIX”, in “A Guitarra Portuguesa. Actas”, Lisboa, ESTAR, 2002, págs. 95, em especial 105, até 116), em “A Guitarra Portuguesa. Actas do Simpósio internacional. Universidade de Évora, 7-9 de Setembro de 2001”, Lisboa, ESTAR, 2002, páginas 13 e 109-111, e de novo Rui Viera Nery, “Para uma História do Fado”, Lisboa, Público, 2004, págs. 280-281 (aqui em polémica insanável Nery versus Caldeira Cabral).
Negando à guitarra funções meramente fadísticas, o autor trata longamente das relações entre a “Guitarra e o Fado de Lisboa” (op. cit. págs. 137-174), e de “A Guitarra e o Fado de Coimbra” (op. cit. págs. 174-185), prolongamento um esquema que herdado de Armando Simões.
Relativamente ao capítulo de temática Coimbrã, assinalemos:

-o passo em frente, decorrente do tratamento em separado (autonomização), pese embora a não problematização da pertinência do subtítulo;
-a reiteração da consensualidade que aponta o ano de 1870 para a entrada da guitarra na cidade de Coimbra (Armando Leça, Armando Simões). A sugestão formulada por Armando Leça com base no testemunho oral de Afonso Lopes Vieira não tem qualquer fundamento. A guitarra aparece referida no meio académico em pleno século XVIII. A hipótese de Armando Leça parece colher alguma pertinência apenas no tocante ao início da fabricação do cordofone nas oficinas coimbrãs, e isto caso tenha fundamento o depoimento prestado pelo guitarreiro Armando Neves ao investigador Armando Simões;
-a precaução observada na análise do conteúdo do manuscrito, inicialmente descoberto nos fundos musicais da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra por Manuel Morais, intitulado “Várias pessas para se tocar em guitarra do ano de 180” (BGUC, Secção de Músicas, MM. 351). À primeira vista, nada autoriza assacar que tais peças foram tocadas em Coimbra. Também não existem pistas no sentido de provar categoricamente que não o foram. Tendo em conta os novos dados sobre a presença da guitarra em Coimbra neste período recuado, pode escrever-se com elevado grau de segurança que obras de Manuel José Vidigal foi bem conhecidas em Coimbra;
-a reprodução passiva da teoria da origem comum (Fado de Lisboa origina o chamado Fado de Coimbra);
-a sinalização de condicionantes genéticas ideossincráticas (canção de salão, ópera italiana, viola toeira);
-a balização da fase de arranque na década de 1890, com Augusto Hilário e seus continuadores, hodiernamente insustentável;
-o emprego alongado da afinação natural;
-a atribuição de um passado guitarrístico a figuras activas nas décadas de 1850/1860, na realidade executantes de viola toeira e de violão;
-a não individualização da guitarra-toeira ou guitarra-banza de Coimbra. Neste particular, o trabalho de Caldeira Cabral representa um recuo, quando comparado com os elementos avançados em 1974 por Armando Simões. Com efeito, a guitarra-toeira de Coimbra emergiu nas oficinas locais no ocaso da década de 1890 e ainda havia quem a tocasse na década de 1960 (Jorge Morais Xabregas, Carvalho Homem, Joaquim Ralha, Felisberto Passos). A sua existência sonora e organológica está perfeitamente documentada, dela remanescendo vários exemplares depositados no Museu Académico de Coimbra. Dispunha de afinação e dimensões anatómicas próprias, timbre individualizado, produzindo um som “banzo” ou “toeiro” de grande rigor nos acordes e forte volume nas notas isoladas, sem perder as características tímbricas das tocatas futricas. Rematando inicialmente o braço em flor, com posterior adopção da voluta oval e quadrangular (na tradição da guitarra inglesa), a guitarra-toeira era um cordofone de anatomia grácil e linhas elegantes, com o tampo superior escorado por duas barras. Experimentou e conheceu três grandes modalidades de toques: os específicos dos acompanhamentos da música tradicional de Coimbra (descantes, modas cantadas, modas coreográficas); os toques da CC (acompanhamento do canto; solos instrumentais), anteriores a Artur Paredes; por fim, os toques surgidos com Artur Paredes (década de 1920), consagrados com o primeiro Movimento Modernista experimentado pela CC. Ignorar a existência da guitarra-toeira de Coimbra, com a sua escala macia de 17 pontos, é fazer silêncio sobre a sua requinta, instrumento que ainda era dedilhado no período da 2ª Guerra Mundial;
-privilegia o papel desempenhado pelos executantes de primeira guitarra, em detrimento dos chamados “segundos guitarras”. Em consequência, ficam esquecidos, ou são relativizados, desempenhos de artistas como Manuel Joaquim Correia (2º de Manuel Mansilha), Eugénio da Veiga (2º de Antero da Veiga), Alfredo Adelino de Sá (2º de Manuel Ribeiro Alegre), Albano de Noronha, Afonso de Sousa, Felisberto Passos, Carlos Paredes (2ºs de Artur Paredes), Augusto Sousa Seco (2º de Abílio de Moura), José Amaral (2º de António Carvalhal), Jorge Godinho (2º de António Portugal e de Jorge Tuna), Ernesto de Melo (2º de Eduardo de Melo), Manuel Borralho (2º de Nuno Guimarães), etc.;
-a descrição algo descontextualizada da nova guitarra de Coimbra, ou de tipo Artur Paredes, cujo paradigma se alicerçou por volta de 1940. Importa precisar que o novo instrumento surgiu na sequência do primeiro movimento modernista da CC (anos 20);
-as lacunas presentes no ponto 5, relativas ao elenco de guitarristas activos em Portugal (op. cit. pág. 221 e ss.), são fruto das listagens propostas em 1903/1904 por Pinto de Carvalho e Alberto Pimentel. Constitui um modelo de prospecção definitivamente ultrapassado, para o século XIX coimbrão, insistir numa História da CC tendo como instrumento dominante a guitarra. Primeiro porque a presença da guitarra em Coimbra está documentada pelo menos desde o século XVIII, sendo anterior à emergência da CC. Segundo, porque a CC, na sua fase de emergência e consolidação não fez da guitarra o seu cordofone de eleição. Terceiro, porque a guitarra serviu na cidade de Coimbra e povoações do concelho tanto a CC quanto a música tradicional praticada pelo povo. Quarto, os dados resultantes da investigação referem expressamente instrumentos constitutivos da tocata convencional mondeguina, impossíveis de ignorar (violão, cavaquinho, viola toeira, rabeca, flauta travessa, bandolim, rabecão). Quinto, a guitarra de Coimbra, no seu primitivo figurino, é bastante posterior à emergência da CC. Sexto, o abandono da tocata tradicional completa no meio académico pelos finais da década de 1880, e a redução da CC à guitarra, representou um empobrecimento de tal forma confrangedor que na década de 1920 o foro musical coimbrão se arrastava penosamente. Sétimo, a tocata convencional manteve-se nos meios futricas, tanto na música popular propriamente dita, como na CC. Continuidade que não impediu o protagonismo de guitarristas-solistas como Gonçalo Paredes, Manuel Paredes, António Rodrigues da Silva, Artur Paredes, Flávio Rodrigues, Joaquim Ralha, Petrónio Ricciuli e outros. Nos meios académicos também se mantiveram resíduos da antiga tocata. Cite-se a presença de ferrinhos e de duas rabecas no grupo de Manassés de Lacerda (1900-1904), ou as serenatas de rabeca dadas pelo também guitarrista Maximino Correia (formado em Medicina no ano de 1917). Por fim, recorde-se que até à década de 1920 a CC manteve a sua vertente de salão, prática iniciada na segunda metade da centúria anterior, onde reinava o piano, ou a associação piano/rabeca/guitarra requinta. Oitavo, a afirmação da CC, enquanto foro estético diferenciado, opera-se primeira e endogenamente no plano da dupla distanciação que a distingue da ancestral tradição dos cantos goliardos estudantis e da música tradicionalmente praticada pelo povo de Coimbra. Distanciação e não ruptura, uma vez que a CC continuou a utilizar os instrumentos mais característicos da tocata convencional futrica e manteve-se dentro da área estético-musical local (esquemas de dedilhação, afinações de instrumentos, ritmos musicais, modo de pronunciar os poemas cantados). Mais se acrescentará, a este propósito, que pela década de 1920, os irmãos instrumentistas e serenateiros Caetanos ainda recorriam a um repertório onde CC e música popular não estavam totalmente independentizadas.
-a reprodução implícita, também presente em outros autores, da teoria da lenta distanciação Coimbra/Lisboa a partir de Augusto Hilário, distanciação que justificaria uma cesura cronológica destinada a caracterizar a “fase de transição”. Justificar-se-á realmente tal cesura? Resulta da própria dinâmica interna da CC que a etapa balizada grosso modo entre as décadas de 1880 e 1920 se pode individualizar como Período Belle Époque. Não encontramos razões ponderosas, face aos dados mais actualizados para isolar no interior do Período Belle Époque/Ultra-Romantismo um submovimento eventualmente intitulável “transição do Fado de Lisboa para a Canção de Coimbra”. Na época de Augusto Hilário e nos anos que se lhe seguiram, a CC atravessou uma espessa fase de fadistização. Esse processo de fadistização está bem presente na produção poética (A guitarra geme e chora, Adolfo Portela, 1895; Guitarra chorando o fado, Celestino David, 1901; Eu quero cantar o fado, Veiga Simões, 1906; Não cantes chora-me o fado, Landislau Patrício, 1909). E não menos presente na falsa premissa que desde a década de 1840 vinha a associar a guitarra ao Fado e a prática da guitarra ao viver fadista. Aproximação ou distanciamento? Analisando em 1980 a produção musical de Hilário e dos seus imediatos seguidores, Francisco Faria defendeu a presença de elementos característicos do Fado de Lisboa, em particular os ritmos sincopados (Fado de Coimbra ou serenata coimbrã?, Coimbra, 1980). Sem pretender abalar a consistência dos elementos postos em relevo por Francisco Faria, cumpre esclarecer que o autor não investigou exaustivamente todas as partituras musicais disponíveis, sobretudo as anteriores a Augusto Hilário. Cerca de 50 anos antes de Augusto Hilário já era bem conhecido, cantado e tocado em Coimbra o Fado da Figueira da Foz. Ritmos sincopados eram praticados em Coimbra por estudantes e futricas desde finais do século XVIII em modinhas e lunduns. No folclore conimbricense existe amostragem significativa de lunduns, ou de modas populares tributárias do lundum, entre elas Trigueirinha, Folgadinho, Ela por Ela, Maneio, Cavaco do Rio. José Dória tocou e compôs lunduns. Quanto a aspectos ligados aos estilos vocais, nem todos os cantores seguiram o chorinho hilariano. Não o seguiram estudantes como Cândido Pedro de Viterbo, Manassés de Lacerda Botelho, Agostinho Fontes Pereira de Melo, Tomás Alcaide, Edmundo de Bettencourt. E nos meios populares, cantores como Alexandre Louro, Francisco Caetano, também não reproduziam a estética de Hilário. O nó górdio da questão “fase de transição” parece residir sobretudo no emprego da guitarra, na sua dupla vertente de instrumento solista e de acompanhamento do canto. Estamos a falar dos toques presentes nas gravações efectuadas entre 1904-1910 e na década de 1920. Por outro lado, não constitui argumento irrefutável afirmar que nos discos anteriores a 1930 a guitarra era tocada esmagadoramente em afinação natural, ou muito menos que os tocadores enxertavam no acompanhamento de espécimes cantados o toque do Fado Corrido. Os executantes de guitarra de acompanhamento não sabiam fazer melhor antes de Artur Paredes. Ou faziam dedilhados sobre acordes de tónica e dominante, eventualmente com pontes de ligação nos bordões do violão (esquema esmagador no folclore português continental, dos Açores e do Brasil, também empregue no Fado), ou enxertavam em paralelo à voz do cantor acompanhamentos de Fado. Um exemplo desta prática ocorre na gravação de Canção da Beira (“Ai, Dava a vida de bom grado”), por António Menano, com o tocador a violentar a canção com o “Fado em Dó Maior” de Ricardo Borges de Sousa. Compara-se a gravação Menano com o excepcional registo da década de 1960 por José Manuel dos Santos/Nuno Guimarães, para se perceber que o acompanhamento não determina a natureza da composição. Outro exemplo comparativo ocorre na afinação dita Fado da Mouraria, tradicionalmente aplicada na Viola Braguesa e também na Viola Amarantina (Sol, Ré, Lá, Sol, Dó, do agudo para o grave). Com esta afinação tocam-se naquelas violas de arame do Minho e do Douro Litoral Chulas, Viras, Malhões, Tiranas, Canas Verdes. É do conhecimento comum que tal afinação e toques que lhe estão sujacentes, na técnica do rasgado e do ponteio, não convertem automaticamente chulas, malhões e tiranas em fados. O impasse resultava da ausência de registos fonográficos para a época anterior a 1900. Parecia resultar, mas já não resulta, pelo menos desde 1995. Precisamente em 1995, os Antigos Tunos da Universidade de Coimbra gravaram uma série de instrumentais, cujos toques e sonoridades vão ao encontro das práticas usuais nas serenatas estudantinas/bandolinatas. Servem de exemplo, Suite Portuguesa, Despedida de Coimbra e Noite Serena (Sine musica nulla vita, Coimbra, Agitarte Estúdios, AGT 00395, 1995). Completando, de certa forma estas peças, refira-se comparativamente Fado do Bandolim, recolhido pelo Grupo Etnográfico de Lorvão, gravado em 1999 (Lauribano, AGT 00299, 1999). Noutro registo, concretizado em 1998, António Ralha e Jorge Gomes recuperaram, com grande rigor, os quase esquecidos toques populares de guitarra (CD Olhar Coimbra, Coimbra, 1998), revestindo peculiar interesse O Beijo, Noite serena, Chegam-se as festas, Jovens sereias, Todas as tardes, Barquinho Ligeiro e Toutinegra. E no ano seguinte, o Grupo Folclórico de Coimbra gravou uma vintena de temas com acompanhamento de tocata tradicional. Cumpre referir Fado de Coimbra, Fadinho das Bodas, O Marujo, A Toutinegra, Flor da Murta e Jovens Sereias (Cantares de Coimbra, Coimbra, GFC-01, 1999). O dado mais saliente, inferido a partir da audição dos registos fonográficos efectuados a partir de 1995 confirma a individualização da CC antes da consagração pública de Augusto Hilário. Postas as coisas nestes termos, uma coisa é analisar a evolução da prática da guitarra no meio académico (uma vez que apenas tem sido privilegiado este aspecto), outra coisa é propor uma lenta transição do Fado de Lisboa para a CC. Contaminação é uma coisa, transição é outra. Transição pressupõe origem comum, seguida de distanciação, hipóteses que nunca foram solidamente demonstradas no plano etnomusical.
-o fecundo trabalho de investigação apresentado por Pedro Caldeira Cabral em 1999, representa um novo olhar sobre as guitarras utilizadas em Portugal e “inventadas” no seio de algumas comunidades regionais portuguesas. Liberta, com sólidos argumentos, a(s) guitarra(s) do mito sufocante que durante décadas a pretendeu mero instrumento do Fado e até signo do próprio Fado. Mas, não deixa de encerrar um paradoxo, na medida em que inventariando os principais praticantes do instrumento o reconduz basicamente ao Fado. A desguetização definitiva e irreversível, ou desfadistização da guitarra, seria operada por José Alberto Sardinha (Tradições Musicais da Estremadura, 2000, págs. 408-444).
Por fim, e já situado fora do âmbito deste alongado levantamento cronológico, cumpre referir a obra sociológica de Ruy Vieira Nery, docente de Música da Universidade de Évora, editada primeiramente em fascículos de discos destinados a evocar “100 anos de Fado” (centenário das primeiras gravações de que há notícia), com lançamento entre 21 de Maio/Setembro de 2004[48]. Os textos foram editados descontextualizadamente, sem qualquer articulação entre o conteúdo de cada capítulo e os trechos musicais selecionados para cada disco.
Os discos nºs 7 (Fados e Baladas de Coimbra) e o nº 8 (O Amigo Paredes), lançados respectivamente a 2 de Julho e a 9 de Julho de 2004 configuram uma autêntica mistificação cultural. O primeiro intenta persistir em incluir a CC na história geral do Fado, reproduzindo um discurso congelado e fechado sobre si próprio. O capítulo de Ruy Nery sobre “O Fado e a boémia estudantil” vinha no livreto do CD 8, dedicado a Carlos Paredes (9/07/2004), enquanto o disco relativo a “Fados e Baladas de Coimbra” era o nº 7 (2/02/2004), com 12 temas.
Os fonogramas são os seguintes: Sonhar Contigo ó Coimbra (1), Saudades de Coimbra (2), Quando os Sinos Dobram (3), Fado da Ansiedade (4), São Tão Lindos os Teus Olhos (5), Fado Hilário (6), Canção das Lágrimas (7), Balada da Torre d’Anto (8), Coro dos Caídos (9), Solitário (10), Vento Não Batas à Porta (11) e Tempo que Não Passa (12). Caso concordássemos com o texto de Ruy Nery relativamente a uma origem comum, com separação/autonomização artística a partir de Augusto Hilário, poderíamos escrever que o disco é na íntegra uma autêntica mistificação da realidade, produzida pela indústria de entretenimento onde o parecer importa mais do que o ser:
a) a composição mais antiga presente neste disco é apenas o Fado Hilário Moderno, pelo que a aceitar-se origem e trajectória iniciais comuns, só aquele espécime e nenhum outro contido no disco tem validade documental para ilustrar a tese assinada por Rui Nery. Em abono do rigor musicológico, não figura no referido disco qualquer composição coimbrã oitocentista, pelo que o anacronismo demasiado flagrante funciona como as versões hollywoodescas de “Sansão e Dalila” (1949), “A Terra dos faraós” (1955), “Os Dez Mandamentos” (1956), e “Cleópatra” (1963). As composições do século XX foram aleatoriamente enxertadas num pseudo século XIX comum, exactamente da mesma forma que Donald Steward, director de efeitos especiais da película “A terra dos faraós”, optou pela anacrónica inclusão de camelos em cenas do filme (Jean-Loup Bourget, “l’Histoire au cinema. Le passe retrouvé”, Paris, Gallimard, 1992).
b) relativamente a esse ciclo dito comum, que Nery exemplifica apenas com duas obras, “Fado de Coimbra” e “Fado dos Estudantes Açorianos”, os mentores do disco não incluem qualquer documento sonoro coevo;
c) a peça nº 9 (Coro dos Caídos) foi indevidamente incluída na amostragem;
d) o único caminho seguro e metodologicamente correcto que justificaria incorporar um disco relativo a Coimbra nesta colecção, seria por via de um sólido trabalho de recolha e reconstituição de Fados Beirões (=fados coreográficos da Beira Litoral), Fados ao estilo de Lisboa que se cantaram em Coimbra (ex: Jorge e Juliana, Fado Espanhol, Fado da Severa), Fados tipo Lisboa usados para ilustração do Operariado (ex: Fado do Conde de Anadia e Fado do Leça, com letras de Adelino Veiga), de composições fadográficas (ex: Triste, de Fortunato Roma da Fonseca, Fado do Choupal, de António Menano, e Fado do Fim, de Paradela de Oliveira), e mesmo da utilização local da guitarra de tipo Lisboa (ex: Fado em Dó, de Borges de Sousa, ou o chamado Fado Francisco Menano).

Em relação ao disco dedicado a Carlos Paredes (1925-2004), como corroborar a sua inclusão e apropriação virtual pela História do Fado de Lisboa, quando o próprio Carlos Paredes no seu processo de afirmação artística nem sequer com o chamado Fado de Coimbra desejou confundir-se? Recorde-se que António Portugal e António Brojo, tanto no programa televisivo de 1983, “Tempos de Coimbra. Quatro Décadas no Canto e na Guitarra”, como na monumental antologia vinil que se lhe seguiu em 1984, expressaram no texto de apresentação dos instrumentais para guitarra as maiores precauções no tocante à inclusão de peças de Carlos Paredes. E só o fizeram tendo em conta o seu passado juvenil como 2º guitarra de Artur Paredes (ca. 1939-1960) e a clara raiz coimbrã das suas primeiras composições que, segundo testemunho do próprio autor, poderiam incluir-se na fase incial do Movimento da Trova (Dórdio Guimarães, “Carlos Paredes… as palvaras e a música. O dilema”, Diário de Lisboa, de 28/11/1971). Ora, se não existe qualquer suporte documental, cultural ou ideológico, que legitime a incorporação da obra de Carlos Paredes na História do Fado de Lisboa, e se a incorporação de parte significativa da obra daquele executante/compositor na CC ainda continua a levantar farta celeuma, só pode concluir-se o disco nº 8 visava legitimar a inclusão Guitarra de Coimbra no universo do Fado de Lisboa, procurando ainda aproveitar toda a herança que lhe está subjacente desde a primeiras gravações do autor a solo em 1962.
O texto proposto por Ruy Vieira Nery contém vulnerabilidades indisfarçáveis, nomeadamente a despropositada convocação do estudante Luís de Almeida, indevidamente feita em 1904 por Alberto Pimentel, a reprodução da transmigração unidireccional Lisboa/Coimbra por via dos agentes estudantis (tese de Ernesto Vieira, 1890), e classificação dos únicos dois espécimes analisados (“Fado de Coimbra” e “Fado dos Estudantes Açorianos”, via recolha César das Neves) na família geral do Fado (cf. Ruy Nery, “Para uma História do Fado. O Fado e a boémia estudantil”, livreto do CD O Amigo Paredes, série nº 8 da colecção O Fado do Público, Lisboa, Público, 9 de Julho de 2004, págs. 29-55; idem, “Para uma História do Fado”, Lisboa, Público, Dezembro de 2004, págs, 109-117). Rui Nery nunca explicita musicalmente o que é que entende por “mesmas características gerais dos demais fados”, persistindo a dúvida sobre nuances que se arrastam desde há mais de 100 anos (pendor estrófico, estrutura silábica, ritmo algo sincopado, sentimentalidade, modo menor?). Duas composições isoladas não configuram argumento satisfatório para documentar a CC pelas décadas de 1840-1850-1860. Aquela estudioso nunca refere as peças para guitarra inglesa, nem o vasto repertório de autores clássicos executado por José Dória na viola toeira, nem canções como Moreninha, Choradinho, Fado Atroador, Tricana d’Aldeia, Noite Serena, Saudades (=Fado das Raparigas), etc.. Sem querer ir mais longe, o “Fado dos Estudantes Açorianos” é cantado, tocado na viola da terra e dançada na Ilha Terceira desde finais do século XIX (com ligeiras variantes de melodia), sem que lhe tenham sido assinaladas quaisquer características fadográficas. Canções sentimentais e até plangentes eram então compostas em Coimbra, no ultra-romântico e burguês Porto, em Lisboa, nos salões e teatrinhos açorianos, atravessando transversalmente franjas de público com gostos comuns. A vaga conimbricense das monodias sentimentais para viola de arame e guitarra, verificou-se simultaneamente noutros locais de Portugal, sem que tenha chegado a sair do limbo das compsições soltas. Em Coimbra foi-se mais longe, erigindo sucessivas composições em movimento artístico dotado de singularidade. Daí que não se nos afigure dislate escrever que se a certos ouvidos as antigas canções utilizadas pelos cultores da CC tinham tantas parecenças com os primitivos fados, até onde iam essas estranhas semelhanças com tantas sentimentais estróficas açorianas?

NOTAS
[1] Assunto escalpelizado por Álvaro Garrido em O cinema sob o olhar de Salazar, Lisboa, Círculo de Leitores, 2000, págs. 274-303.
[2] Algumas achegas para a problematização e contextualização deste assunto em António Manuel Nunes, “Da(s) memória(s) da Canção de Coimbra”, in Canção de Coimbra. Testemunhos Vivos (antologia de textos), Coimbra, DG da AAC, 2002, págs. 9-15.
[3] Em Coimbra é costume recorrer-se a expedientes vagos, do tipo “no tempo do Hilário”, “no tempo do Menano”, “essa variação é do Dr. José Amaral”, “quem gravou isso foi o Paradela”.
[4] James Fentress e Chris Wickham, Memória social, Lisboa, Teorema, 1994, pág. 95.
[5] Recepcção portuguesa a Maurice Louis em Tomáz Ribas, Danças populares portuguesas, Lisboa, Biblioteca Breve/ICLP, 1983, págs. 13-18.
[6] Em sentido diverso, para os herdeiros da música de intervenção político-social das décadas de 1960-1970, “Música Popular Portuguesa” pressupunha a reelaboração urbana das tradições musicais do povo português com vista a um projecto demopédico. Vide Mário Correia, Música Popular Portuguesa. Um ponto de partida, Coimbra, Centelha, 1984, págs. 268 e ss.
[7] No mesmo sentido, vide a entrevista de João Pedro Oliveira a José Alberto Sardinha, “Tradição popular erudita. Fenómeno esquecido pela etnomusicologia, as tunas são objecto da última obra de recolhas dos sons da tradição portuguesa. Uma proposta de José Alberto Sardinha”, em Diário de Notícias, ano 141, Nº 49.840, de 12 de Setembro de 2005, págs. 36-37.
[8] “Todo aquele que pretender tratar a presente matéria depara, de imediato, com graves dificuldades no que respeita a autorias de músicas e letras, bem como às datas de surgimento das composições, numa Sociedade Académica (mal) habituada a considerar como “populares” quase todas as composições”, António Manuel Nunes, “O foro académico musical Coimbrão: individualização de um discurso musical-semântico”, Munda, nº 20, Coimbra, Novembro (de) 1990, pág. 55. No mesmo sentido Vera Lúcia Vouga: “(...) uma canção estudantil, de “doutores” segundo a designação coimbrã, transmite-se com características muito marcadas de forma tradicional e, por isso, marginal à literatura-instituição. Assim, reinterpreta, reinventa canções que, por simples esquecimento do autor circulam anónimas”. Cf. Na galáxia sonora: sobre o Fado de Coimbra, Porto, 1991, pág. 55.
[9] Irreitação bem visível no primeiro semestre de 2004, quando a comunicação social anunciou o processo de candidatura da CC a Património da Humanidade junto da UNESCO. Cf. Andreia Trindade, “Canção de Coimbra Património da Humanidade. Proposta de candidatura vai hoje a reunião na Câmara”, Diário As Beiras, de 15 de Março de 2004, pág. 24; Ana Margalho, “Autarquia prepara proposta a apresentar à Unesco. Fado de Coimbra candidata-se a Património da Humanidade”, Diário de Coimbra, de 15 de Março de 2004; “Canção de Coimbra candidata a património da Humanidade”, Público, de 15 de Março de 2004 (páginas de Público Centro); Américo Sarmento, “A diferença coimbrã. Coimbra vai candidatar a sua Canção a património da Unesco marcando a diferença com o Fado de Lisboa que também aspira à mesma distinção. Autarquia apoia”, Jornal de Notícias, de 16 de Março de 2004, pág. 42; Patrícia Almeida, “Canção de Coimbra recusa unir-se ao Fado de Lisboa”, Diário As Beiras, de 17 de Março de 2004, pág. 6; Isabel Jordão, “Fado a património provova guerra”, Cultura & Espectáculos, de 17 de Março de 2004, pág. 42.
[10] Ernesto Vieira, Dicionário Musical, Lisboa, Companhia Typographia Editora, 1890, pág. 18.
[11] João Pinto de Carvalho, História do Fado, Lisboa, Empresa da História de Portugal, 1903 (2ª edição, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1984).
[12] Alberto Pimentel, A triste canção do sul. Subsídios para a História do Fado, Lisboa, Livraria Central de Gomes de Carvalho Editor, 1904.
[13] António José Arroyo, filho do músico militar de origem espanhola José Francisco Arroyo, era irmão do fundador do Orfeon Académico de Coimbra, João Marcelino Arroyo (Porto, 4/10/1861; Sintra, 18/05/1930). Nasceu no Porto em 19 de Fevereiro de 1856, tendo falecido em Lisboa a 25 de Março de 1934. Diplomado em Engenharia pela Academia Politécnica do Porto (1878), distinguiu-se como engenheiro dos caminhos de ferro, inspector do ensino comercial e industrial, estudioso de arte e música. Era cantor, tendo actuado a solo no Teatro Académico de Coimbra na estreia inaugural do Orfeon Académico em 1880.
[14] Armando Leça, Da música portuguesa, 2ª edição, Porto, Livraria Educação Nacional, 1942, pág. 46 (a 1ª edição veio a lume em 1922, com base na compilação de artigos escritos desde 1918).
[15] Armando Leça, Da música portuguesa, 2ª edição, Porto, Livraria Educação Nacional, 1942, pág. 48.
[16] Armando Leça, Música popular portuguesa, 2ª edição, Porto, Editorial Domingos Barreira, s/d, págs. 122-123 (1ª edição de 1945).
[17] Os escritos de Armando Leça lançariam sementes para futuros investigadores. Com base numa anotação imputada a Afonso Lopes Vieira, o autor tentava demonstrar que a guitarra não aparecera em Coimbra antes de 1870. Armando Sampaio (A guitarra, 1974) perfilhou esta tese, como sabemos infundamentada. Nos escritos de 1918 e 1945 colheria Francisco Faria a inspiração para o título e argumento da comunicação Fado de Coimbra ou Serenata Coimbrã?, 1980.
[18] Luís Moita, O fado. Canção de vencidos, Lisboa, Empresa do Anuário Comercial, 1936.
[19] Luís Moita, op. cit., págs. 111-112.
[20] Luís Moita, op. cit., pág. 122.
[21] Luís Moita, op. cit., pág. 301.
[22] Rodney Gallop, Cantares do povo português. Estudo crítico, recolha e comentário, Lisboa, Edição do Instituto para a Alta Cultura, 1937, pág. 17: “Não inclui na minha colecção fado algum (...), apesar de haver escutado, com prazer e interesse, este curioso fenómeno musical, não somente nas ruas luarentas de Coimbra, e em Lisboa (...)”.
[23] Rodney Gallop, op. cit., 1937, pág. 20.
[24] Nuno Rosmaninho, O princípio de uma revolução urbanística no Estado Novo. Os primeiros programas da cidade universitária de Coimbra (1934-1940), Coimbra, Minerva, 1996, pág. 63.
[25] Mário de Sampayo Ribeiro, A música em Portugal nos séculos XVIII e XIX (Bosquejo de história crítica), Lisboa, Tipografia Inácio Pereira Rosa, 1938, págs. 84-85 e 116-121.
[26] Para Sampayo Ribeiro, popular significava estritamente “ancestral e anónimo”. Era uma visão claramente oitocentista, romântica, assente na errónea convicção de um povo como um todo anónimo em processo de construção colectiva. De acordo com este postulado, a música de Coimbra, divulgada pelos ranchos dos bairros, não eram antiga, anónima, nem autêntica. Cf. Mário de Sampayo Ribeiro, “A música em Coimbra”, Coimbra, 1939, págs. 31-32.
[27] Mário de Sampayo Ribeiro, op. cit. pág. 120.
[28] Mário de Sampayo Ribeiro, op. cit., pág. 118.
[29] Recorrendo a um tipo de linguagem que também era a utilizada nas “serenatas de Coimbra” da Emissora Nacional e em directos da RTP. Podemos escutá-la na transmissão em directo da Serenata do Centenário de Augusto Hilário (1964) e nas falas de um programa televisivo de 1959 onde Maria Teresa de Noronha interpreta temas de Coimbra (Cf. cassete vídeo “Recordando Maria Teresa de Noronha (1918-1993)”, Lisboa, Videofono, 1995/1998.
[30] Mais elementos para a compreensão desta querela interna em Eduardo Sucena, “Lisboa, o Fado e os fadistas”, 2ª edição, Lisboa, Veja, 2002, págs. 144-162; Rui Vieira Nery, “Para uma História do Fado”, Lisboa, Público, 2004
[31] Proposta impossível de corroborar, pois empurra a CC para a auto-narrativa, quando a CC não é poeticamente autobiográfica. O relato autobiográfico, sistematicamente reciclado e até burilado ocorre no Fado de Lisboa e no Tango. Em determinados textos exógenos, as propostas de apreensão da realidade coimbrã chegam a escandalizar os cultores locais. Exemplifiquemos: no tema gravado no Porto, “Fui moço e fui rapaz”, ao que parece oriundo de Moçambique, dificilmente poderá ter origem conimbricense, cidade onde se distingue muito vincadamente meninice e adolescência, empregando mais o termo “cachopo”. Porém, nos concelhos do Douro Litoral, não se faz na tradição oral a menor distinção entre bebé, menino e jovem, aplicando-se “moço/moça” indistintamente (na fonética, “mu-ou-ço”). No tema “Toada do Penedo da Saudade”, Leonel Neves fala em “Os moços das capas pretas”, modo de dizer desconhecido em Coimbra. Em “Coimbra”, Raul Ferrão arrisca um impossível “A Lua é a faculdade”, pois na época em que foi feita a composição “faculdade” designava genericamente nos meios lisboetas Universidade, enquanto em Coimbra não era uso dizer-se “ando na faculdade”, estou matriculado na faculdade”. Um extenso repositório de letras não coimbrãs pode encontrar-se em José Ribeiro de Morais, “Colectânea de fados e canções de Coimbra”, Porto, Almeida & Leitão, 1998.
[32] Mascarenhas Barreto, O Fado. A canção portuguesa, Lisboa, Gráfica Boa Nova, 1959, pág. 4.
[33] Mascarenhas Barreto, op. cit., 1959, págs. 17-18. A tentativa de documentar a “essência”da CC com uma canção de teatro de revista é obviamente uma fraude grosseira.
[34] Marcarenhas Barreto e Carlos Branco, Portugal do Fado, Lisboa, Guimarães Editores, 1960.
[35] Mascarenhas Barreto e Carlos Branco, op. cit., 1960, in Introdução.
[36] O mesmo tipo de argumentação congelada ocorre em Eduardo Sucena, “Lisboa, o Fado e os fadistas”, 2ª edição, Lisboa, Veja, 2002, pág. 181.
[37] “Balada do Desejo”, de José Morais, 5ª quadra, pág. 10; “Fado Hilário”, na versão lisboeta do letrista Gabriel de Oliveira, pág. 51; “Coimbra ao luar”, pág. 52; “Tricana, na pág. 55; “Adeus Coimbra velhinha”, na pág. 59; “Rainha do Choupal”, na pág. 62; “Canção de Coimbra”, na pág. 68; “Matar saudades”, de Frederico de Brito, pág. 74; Rosas santas”, com versos de Ângelo Fernandes, na pág. 101; “Coimbra de sempre”, na pág. 145.
[38] Vera Lúcia Vouga, Na galáxia Sonora: sobre o Fado de Coimbra, Porto, 1991, págs. 47-62.
[39] No mesmo sentido, António Manuel Nunes, No rasto de Edmundo de Bettencourt. Uma voz para a modernidade, Funchal, DRAC, 1999, págs. 45-48.
[40] Vai um bando de andorinhas/”Vai um bando d’andorinhas; Que te leva um abraço/”Que te levam um abraço”.
[41] Segundo informações prestadas pelo Dr. António Ralha em 30 de Julho de 2002, pela década de 1960 cantavam-se na Samaritana estropiamentos inimagináveis, entre eles “Para bem adocicar” e “Irra Diabo da tua fronte!”.
[42] O lado negro destas crenças cifra-se no repertório gravado em 1961 e editado em 1962 pelo Orfeon Académico de Coimbra, concebido como cartão de visita da sua digressão artística aos EUA em Outubro de 1962: LP Coimbra Orfeon of Portugal, EUA, Monitor MP-596, 1962, reditado pela Ovação. O repertório mostra-nos um regente tristemente decrépito (Manuel Raposo Marques), conivente com a ideologia cultural do Estado Novo, nomeadamente no abuso de rapsódias popularuchas como “Rapsódia Luso-Brasileira”, “O Vosso Galo Comadre” e “A Oliveira da Serra”.
[43] Teoria que aplicada veio a originar a arrumação das matérias presentes na obra de Carlos Caiado, Antologia do Fado de Coimbra, Coimbra, S/E, 1986. Esta recolha permite-nos inteligir as representações mentais e culturais dos cultores juvenis da CC nos idos de 1980. Cronologia ausente, títulos e letras estropiados (não demarcando os originais dos estropiamentos introduzidos por via oral), “índice alfabético dos Fados” (fado, verdadeiramente fado, neste índice, é apenas o Fado Corrido de Coimbra).
[44] Neste particular, continuam válidas as observações formuladas por Fernando Lopes Graça, in Musicalíssimo, de 16 de Fevereiro de 1973: “(...) A canção portuguesa, numa boa percentagem, é de limitado âmbito tonal: cifra-se, em geral, numa oscilação de tónica à dominante (...)”. Lopes Graça sugere não uma reprodução passiva de melodias “pobres” ou “banais” mas a reelaboração do musicólogo.
[45] Informações de acordo com a nota remetida ao autor em 3 de Agosto de 2001 pelo Coronel José Anjos de Carvalho.
[46] Frederico de Freitas, O Fado, canção da cidade de Lisboa. Suas origens e evolução, Lisboa, Sociedade de Língua Portuguesa, 1973.
[47] Isto se diga, numa altura em que grupos folclóricos da Beira Litoral, forçando a nota da Canção de Coimbra como um pretenso “folclore urbano”, ou no pior dos casos, “música popular do Baixo Mondego”, começaram a apresentar nas suas digressões ao estrangeiro números de “fados e guitarradas de capa e batina”. Trata-se evidentemente de uma fraude cultural.
[48] O projecto teve larga publicidade no jornal Público, com qual foi sendo editado aos fins de semana. Assim, “O Fado do Público. Tudo isto existe, tudo isto é público, tudo isto é Fado”, in Público, de 21 de Maio de 2004, págs. 50-51, com o plano calendarizado da série discográfica.

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