sábado, dezembro 24, 2005

A Canção de Coimbra no século XIX (1840-1900)
A Memória e os Sons
Por António M. Nunes
II. Serenatas dos futricas e das tricanas
O desaparecimento físico de instrumentistas populares como José Lopes da Fonseca (1883-1976), Flávio Rodrigues da Silva (1902-1950), de compositores como José das Neves Elyseu (26/05/1872; 13/11/1924), e de cantores como Alexandre Louro, Francisco e Alberto Caetano, ditou o silenciamento da memória das serenatas futricas.
Outras condicionantes podem ser enunciadas, entre elas, o avassalador predomínio de gravações discográficas académicas concretizadas na segunda metade da década de 1920, a maior visibilidade dos “fados e guitarradas” estudantis que no país e estrangeiro acompanhavam a Tuna e o Orfeon, o crescente grau de poluição sonora que foi ditando a “morte” de lugares de extraordinária acústica natural (Largo do Romal, encosta de Montarroio, Alto de Santa Clara, Mondego), a decadência dos ranchos dos bairros que outrora animavam arraiais populares, romarias, festas da Rainha Santa e Fogueiras de São João com as suas danças e cantorias.
Em 1942 o Estado Novo iniciou a demolição de parte substancial da antiga Alta Salatina, forçando os moradores à migração para os novos bairros de casas económicas construídos na Arregaça e em Celas. As medievais Fogueiras de São João Baptista da Alta entraram em franca desagregação, engolidas pela voragem das demolições. A derradeira, animada apenas com cordofones, teve lugar em Junho de 1947 no Largo do Castelo. À roda de 1960, na Baixa, o antigo rancho do Romal (Flores da Mocidade) ensaiava os derradeiros passos. Os moradores “expulsos” da Alta faziam por manter viva no Bairrinho de Celas uma tradição que quase chegou às vésperas do 25 de Abril de 1974. Num apontamento tomado em Celas pelo Emissor Regional nesses anos crepusculares, ouvem-se quase em requiem a voz rouca do mandador, um acordeão, um clarinete, e o que restava das velhas danças (Marinheiro do Mar Largo, Fogueiras do São João, À Porta do Lúcio, etc. ). Uma dor de alma!
Em 1970, o jornalista Álvaro Perdigão conseguiu reunir, para efeitos de registo em cassete, o antigo tocador de violão José Lopes da Fonseca (Zé Trego), Alexandre Louro (cantor), Guilhermina Peixoto (cantadeira, nascida por 1888) e Esmeralda Peixoto. Da recolha então efectuada resultou um programa exibido no Emissor Regional, onde se recordaram antigas modas das Fogueiras, fados-canções populares ou tradicionalizados, marchas e as esquecidas serenatas fluviais dos futricas e das tricanas[1].
Não se sabe ao certo quando tiveram verdadeiramente início as decantadas serenatas fluviais futricas. O primeiro testemunho documental de que dispomos reporta-se ano de 1892. A serenata fluvial em honra da Rainha Santa parece traduzir o esforço de modernização do programa tradicional, ao adoptar diversões aptas a satisfazer os gostos do público de finais de oitocentos, como as corridas velocipédicas e a tourada. O certo é que em 1892, a comissão de festas da Rainha Santa Isabel decidiu diversificar o tradicional programa, nele incluindo uma serenata fluvial em barcas serranas.
A partir de finais de Junho de 1892, a imprensa regional começa a noticiar a “vellada no rio”, solicitando a colaboração dos barqueiros, e noticiando que uma das poetisas convidadas foi Amélia Jany. Sabe-se que Amélia Jany escreveu um conjunto de quadras destinadas à valsa-serenata “Jovens Sereias”. Os jornais não explicitam quem foram os artistas ou grupos encarregues da serenata, mas não é de excluir a hipótese de ter sido realizada pela tocata e vozes do Rancho do Largo do Romal, grupo que costumava manter armado o pavilhão das festas sanjoaninas até Julho, servindo de arraial popular nos anos em que havia festejos da Rainha Santa.
O regente da Banda de Infantaria, António José Ribeiro Alves terá participado na realização do evento, com melodias de estilo popular, a exemplo de uma canção destinada a ser cantada nas festas da Rainha Santa no pavilhão da Praça Velha (BGUC, Secção de Músicas, MM-79).
A preparação desta primeira serenata fluvial, inserta no programa oficial das festas da Rainha Santa, achava-se em curso na parte das músicas e coros, conforme notícia de “O Tribuno Popular”, de 28 de Junho de 1892. Na edição de 20 de Julho de 1892, “O Tribuno Popular” informava que a serenata teria lugar na noite de 22, em presença de Suas Magestades El- Rei D. Carlos, Dona Amélia, e do Príncipe D. Luís Filipe. A comissão organizadora da serenata pensava deslocar-se ao Pátio da Universidade e repetir a serenata ante as régias visitas. A serenata teve lugar numa sexta-feira, dia 22 de Julho de 1892, entre a 23 horas e a meia noite. Sairam as barcas, belamente engalanadas com balões venezianos e bandeiras, da Lapa dos Esteios em direcção ao cais e ponte velha. As barcas traziam tocatas e ranchos de raparigas. Suas Magestades observaram e ouviram a serenata das janelas do Observatório Astronómico, ao Pátio da Universidade (“O Tribuno Popular”, de 23/07/1892).
Enorme ajuntamento de povo, postado no Cais fluvial e nos parapeitos da ponte de ferro acolheu e ovacionou a serenata. Não se repetiu a serenata no Pátio da Universidade, dado o atraso verificado no passeio fluvial, mercê do encalhamento inesperado de algumas barcas. A serenata futrica de 1892 foi um ritual misto onde participaram elementos masculinos e femininos, que visou homenagear a Rainha Santa e a Família Real portuguesa.
A serenata voltaria a realizar-se no dia 6 de Julho de 1894, num Sábado. As barcas sairam da Lapa dos Esteios às 21. 30 horas, tendo chegado ao Cais às 23 horas. A tocata popular, as tricanas cantadeiras e o repertório de canções populares receberam palmas e saudações entusiásticas da multidão apinhada na ponte, Largo da Portagem e cais (“O Tribuno Popular”, de 7/07/1894).
A terceira serenata oficial em honra da Rainha Santa ocorreu numa sexta-feira, pelas 22 horas do dia 10 de Julho de 1896 (“O Tribuno Popular”, de 11/07/1896). A serenata fluvial de 1896 ficou na memória popular, pois segundo a imprensa regional foi neste ano que pela primeira vez se iniciou o culto da Rainha Santa Nova, notável escultura artística de Teixeira Lopes, ofertada à Confraria e à cidade pela Rainha Dona Amélia. O projecto andava em preparativos desde a visita régia de 1892, e nos festejos de 1894 o povo admirara o novo andor concebido por António Augusto Gonçalves e executado em Vila Nova de Gaia sob orientação de Teixeira Lopes[2]. Postada em cima de um estrado na Praça 8 de Maio, Guilhermina Peixoto cantou uma “Saudação” à Rainha Santa nova (que ainda entoou na entrevista de 1970).
Relativamente aos festejos de Julho de 1898, a comissão anunciou que não realizaria a tradicional serenata fluvial, em virtude da exagerada e anormal secura da corrente (“O Tribuno Popular”, de 15/06/1898). De acordo com “O Tribuno Popular”, de 22 de Junho de 1898, a comissão programadora substituiu a serenata por uma grande marcha musical, com tocata, cantadeiras, balões, que vinda do Vale do Inferno desaguou no Largo da Portagem entre vivas e aplausos.
A serenata de 1900 teve lugar no dia 6 de Julho. As barcas saíram da Lapa dos Esteios pelas 21:00 horas e vogaram na direcção do Cais fluvial antigo, junto à Ponte. Acostadas as barcas, segiu-se um desfile de cantorias e archotes pela Portagem e ruas circundantes (“O Conimbricense”, de 26/06/1900 e 10/07/1900).
Nos festejos seguintes, a serenata fluvial ocorreu num Sábado, dia 12 de Julho de 1902, organizada pelos músicos dos Bombeiros Voluntários e ranchos do Pátio da Inquisição e Alto de Santa Clara (“O Tribuno Popular”, de 12/07/1902). O Rancho do Pátio da Inquisição ensaiou expressamente e estreou nesta serenata a “Balada do Mondego”, com música de José das Neves Elyseu e letra de Henrique Martins de Carvalho (“O Tribuno Popular”, de 16/07/1902). Integrava a tocata do Pátio da Inquisição o tocador de violão José Lopes da Fonseca.
No ano de 1904 a serenata foi realizada na noite de 9 de Julho (“O Tribuno Popular”, de 22/06/1904), embora a imprensa seja bastante comedida na ventilação de pormenores. Em Julho de 1906, “O Tribuno Popular”, de 13 de Junho de 1906 anunciava a repetição da serenata fluvial “com ranchos”, efectivamente realizada, dela havendo notícia em “O Tribuno Popular”, de 11 de Julho de 1906.
A partir de 1892, a serenata fluvial futrica em honra da Rainha Santa rapidamente se transformou numa tradição que logrou manter-se nos programas oficais até à implantação da República. Apenas não ocorreu nos anos em que a escassez de corrente ameaçou fazer encalhar as barcas, a exemplo do sucedido nos festejos de 1898.
Nos anos que se seguiram à Revolução de 5 de Outubro de 1910 as festas da Rainha Santa atravessaram um período de crise, fruto do conflito surgido entre o Estado e a Igreja Católica. A “Gazeta de Coimbra”, ao divulgar o programa das festas atinente ao período 1911-1913, não faz a menor alusão às antigas serenatas, o que à primeira vista nos leva a supor terem desaparecido. Mas não desapareceram. Continuaram a realizar-se, por vezes com dois a três grupos distintos numa só noite ou em noites diferentes, sem que delas constasse referência em programas impressos pela Confraria.
O já mencionado relato do barbeiro José Lopes da Fonseca (Zé Trego) reporta-se ao período de inauguração da Praia Fluvial entre a Ponte de Santa Clara e o muro do Parque Dr. Manuel Braga. Um testemunho oral prestado pela filha de José Trego, Maria José Sousa Lopes Morais, em Junho de 2001, confirma esta inferência. Relata Maria José Sousa Lopes Morais, que sendo rapariguinha de sete para oito anos (nasceu em 1929) se lembra de ter assistido à derradeira serenata fluvial realizada numa barca serrana, que engalanada e iluminada com tigelas de barro e azeite vogou junto à amurada do Parque Dr. Manuel Braga. A fazer fé neste testemunho, as últimas três serenatas fluviais futricas tiveram lugar em Julho de 1936, em três noites distintas (1 – Serenata do Grupo Salsichon; 2 – Serenata do Rancho do Alto de Santa Clara; 3 – Serenata da Alta Salatina).
Ouçamos o próprio José Lopes da Fonseca:
“As serenatas no Mondego eram feitas em barcas serranas, umas barcas póprias que vinham de Penacova, por aí abaixo, quando havia água para navegarem esses barcos. A primeira serenata que se fez (sic) foi com um grupo que havia na (Rua) Sofia, o Salsichon, em que eu tomava parte também na orquestra. Era só a orquestra, não se cantava. Fomos pelo rio acima, e tal, e chegamos a certo ponto, viemos pelo rio abaixo, a tocar (e tal, etc.), muitas palmas de um lado e doutro.
Passados oito dias, isto era quando existia a praia artificial, passados oito dias, fez-se uma serenata de Santa Clara: em que apresentava o barco pintado com o Convento Velho. Aí já metiam mulheres. Ensaiaram... e tal. Também tomei parte na orquestra, a tocar. Foi a segunda serenata.
E da nossa Alta que foi sempre caprichosa – a nossa Alta: vai-se fazer também uma serenata no Mondego! Ensaiou-se. A gente foi mais fina do que os outros. Porque a primeira serenata que se fez veio pelo meio do rio abaixo e as águas captavam a orquestra. Quando foi o segundo rancho de Santa Clara, também chegou a meio do rio e não se ouvia como devia ser. Disse: não!, a nossa serenata há-de-se ouvir (...). Ao fundo do Parque – e ainda existe essa rampa que vai ter ao rio - , o barco parou aí, entrou tudo (para dentro), e tínhamos então três mulheres já veteranas que cantavam muitíssimo bem.
E portanto, o barco saiu dali encostado ao Parque da Cidade. Quem estava no Parque da Cidade ouvia distintamente a serenata. E tivemos a sorte do vento estar pró lado de Santa Clara (...). Foi a serenata que mais brilho teve.” (termina o relato com uma interpretação da “Balada do Mondego”)

Na primeira década do século XX, as serenatas fluviais faziam furor na cidade de Coimbra, rivalizando entre si os ranchos de São João actuantes nos vários bairros (Romal, Pátio da Inquisição, Santa Clara, Rua Larga, Largo de São João de Almedina, Rua do Borralho) para apresentar as melhores novidades musicais, os mais excelentes instrumentistas e vozes. Cada rancho de bairro tinha os seus tocadores, cantores, compositores e ensaiadores, produzindo e estreando anualmente novidades que rapidamente se tradicionalizavam. Os defensores do folk-lore “puro”, isto é, supostamente rural, anónimo e multissecularmente imaculado, faziam vistas grossas a esta produção musical conimbricense, negando-lhe legitimidade “folclórica”. Para os anos de 1900-1907 podemos citar os seguintes títulos autografados num caderno de solfas manuscritas, interpretados no Largo do Romal, Praça Velha e serenatas fluviais, com indicação expressa de “acompanhamentos para guitarra”: O Raiar da Aurora (passe calle), Devaneios, Estrela do Romal, Que Saudade, Mondego, O São João Novo, e Marianinha.
À semelhança das serenatas italianas de Antigo Regime e do Romantismo, bem como da serenata organizada em 1880 pela Academia de Coimbra, aquando das festas comemorativas do Tricentenário de Camões, as serenatas fluviais futricas foram as primeiras a configurar um carácter de consistência e durabilidade, na sua vertente de serenatas-espectáculos, ritual onde não podemos deixar de descortinar influências das serenatas-espectáculo venezianas e napolitanas associadas ao elemento água, e ainda às tradicionais serenatas fluviais académicas celebrativas do fim do ano escolar (Medicina, Teologia, Direito).
Mas aquilo que se estava a fazer em Coimbra não era radicalmente diverso das aclamadas serenatas-espectáculo que então se realizavam anualmente na época estival na Baía de Nápoles. As serenatas fluviais futricas integradas nos programas festivos da Rainha Santa Isabel atingiram enorme reputação na cidade e fizeram nome pelo país, fruto dos milhares de peregrinos que de dois em dois anos acudiam a Coimbra. Tanto assim foi que as tricanas de Aveiro e as lavadeiras de Matosinhos/Leça da Palmeira também começaram a realizar serenatas no Rio Vouga e no Rio Leça. No último quartel do século XIX, a modernização do programa religioso das Festas da Agonia, em Viana do Castelo, comportou inclusão de regatas, festivais no jadim público e serenata (Cf. Albertino Marques, “A minhota trajada à vianesa: a construção histórica de um ícone da cultura popular”, in Cadernos do Noroeste. Série Sociologia, Universidade do Minho, Volume 18, 2002, pág. 134).
O agrupamento musical Salsichon, da Rua da Sofia, incluia instrumentos de corda e sopro e teria um perfil similar a outro que visualizamos numa fotografia antiga cedida pelo Dr. António Ralha[3]. A sua composição estaria muito próxima do Grupo Musical de Coimbra, trupe da regência do músico Ricardo Campos, que em 1913 dava serenatas instrumentais no Mondego e efectuava excursões fluviais dominicais entre Coimbra e Montemor-o-Velho (“Gazeta de Coimbra”, de 23/04/1913). Foi aliás um agrupamento deste género que pelas 22 horas de 4 de Junho de 1905 abrilhantou as festas da Queima das Fitas e Enterro do Grau – uma serenata fluvial em barcos iluminados e engalanados, com tocata e tricanas interpretando canções populares, oferta da classe comercial à Academia.
Qual o repertório das serenatas fluviais futricas? Confrontando os relatos de imprensa com um caderno de partituras manuscritas do Rancho do Romal, pode afirmar-se que os temas interpretados eram canções em voga nas Fogueiras de São João, valsas, mazurcas, barcarolas, contradanças, serenatas, baladas, passe-calles e marchas. Dos muitos espécimes recolhidos da tradição oral, ou editados em partituras, citemos: Não Ames, Ó Águia, Filha do Guadalquivir, Morena, Jovens Sereias, Noite de Primavera, Noite Serena, Despedida de Coimbra, Fado João de Deus, Balada da Despedida do 5º Ano Jurídico de 1891-1892, Flores Tristes, Guitarra Geme, Fado de Condeixa, Fado Amoroso, Olhos Negros da Guiné, Às Estrelas, Fado do Rancho Alegre Mocidade (1907), Fado do Largo de São João de Almedina (1910), Barquinho Ligeiro, Balada de Coimbra, Barquinha Feiticeira, Balada do Mondego, Toutinegra, diversas marchas dos bairros e da Rainha Santa, Dá-me um Teu Beijo, Folguedos, Na Roda sem Par, Balada do Largo de São João de Almedina, O Beijo, etc..
Que instrumentos musicais eram mais utilizados? Essencialmente os cordofones que marcavam presença nas Fogueiras (violas toeiras, violões de cordas de aço, bandolins, cavaquinhos, rabecas, guitarras dos tipos Lisboa e Porto, por vezes o rabecão), instrumentos de sopro (flauta, clarinete), podendo ocorrer o pandeiro e os ferrinhos.
Na transição do século XIX para o século XX alguns dos instrumentos mais queridos da velha tradição popular estavam a desaparecer, face à consagrada hegemonia da guitarra. Era o caso da flauta travessa, do cavaquinho e da viola toeira. Alguns jornais regionais, com assento na cidade, não deixaram de constatar e de lamentar tal facto. Num breve artigo sobre as Fogueiras de Junho de 1902, realizadas no Pátio da Inquisição, Largo das Olarias, Montarroio, Couraça de Lisboa, Rua Larga, Largo do Teatro Sousa Bastos, Arregaça e Alto de Santa Clara, “O Tribuno Popular”, de 21 de Junho de 1902, criticava a rarefacção da viola de arame, e perante o desaparecimento do cavaquinho chegava ao ponto de escrever “cavaquinho é morto”[4].
Outra vertente das serenatas futricas, agora em versão exclusivamente masculina, eram as serenatas de rua ou cortejamento, realizadas entre finais do século XIX e a década de 1940. Dos vários nomes tombados no anonimato ficaram registados na memória oral:

-o tenor Basílio, ajudante de barbeiro
-o cantor Luís Mesquita, tipógrafo (o Basílio e o Mesquita eram também os cantores de serviço no Teatro dos Borras, à Rua da Sofia, no primeiro decénio do século XX);
-os irmãos Francisco, José e Alberto Caetano. Instrumentistas e cantores afamados nos meios futricas (Francisco era primeiro tenor, Alberto era bom barítono), gravaram vários discos na década de 1920, emprestando voz, guitarra, piano e alaúde a canções das Fogueiras e temas serenis como a curiosa Não Ames, cuja melodia originou uma valsa erradamente atribuída a Flávio Rodrigues da Silva (=Valsa em Fá Maior);
-Alexandre Louro (1899-1985), cantor de temas como Ó Águia, O Beijo, Balada de Coimbra e Noite Serena. Terá ficado célebre, de acordo com o relato familiar, numa festa dada no Casino do Estoril por alturas da celebração do Armistício/Tratado de Versalhes, em que foi acompanhado por Flávio Rodrigues da Silva;
-o Trio Coimbra, formado pelo barbeiro e guitarrista Flávio Rodrigues da Silva, Augusto da Silva Louro e José Maria dos Santos (por 1923), tendo dado espectáculos, serenatas, e gravados discos Odeon em Paris, a solo e com António Menano, tendo na aocasião Flávio interpretado variações e uma versão instrumental da Marcha da Rainha Santa;
-Walter Figueiredo, primeiro tenor, bom cantor de música popular e de temas de serenata, activo entre as décadas de 1940-1980. Walter Figueiredo, filho de Violanta Rodrigues e de Manuel Figueiredo, nasceu em Manaus (Brasil), no dia 27 de Fevereiro de 1920 e faleceu em Coimbra a 18 de Dezembro de 1990. Veio para Coimbra com três anos de idade e viveu a juventude na Figueira da Foz. Cumpriu quatro anos de serviço militar nos Açores, durante a Segunda Guerra Mundial. Fez o curso comercial e foi escrituário na Fábrica de Curtumes de Coimbra. Fez inúmeras serenatas na 2ª metade da década de 1940, altura em que divulgou os temas da autoria de João de Oliveira Anjo (Morena dos meus abrolhos, Ó madrugada silente, etc.). Comunista e opositor ao regime de Salazar, colaborou assiduamente em récitas populares e no Grupo de Cordas do Ateneu de Coimbra. Nos inícios da década de 1980 cantou regularmente ao lado de António Ralha, Jorge Gomes, Manuel Dourado e Jorge Cravo.
-José das Neves Elyseu, tocador de rabeca, músico, compositor de modas destinadas ao Rancho do Pátio da Inquisição, funcionário na Escola Agrária de Coimbra, falecido em Novembro de 1924. Participou activamente em serenatas dadas em Penacova, Bencanta e Mondego. Autor de várias peças popularizadas, entre elas Balada do Mondego (vulgo de Coimbra), Barquinho Ligeiro (1912), e Não Ames, a última feita em homenagem ao lugar de Bencanta onde estava instalada a Escola de Regentes Agrícolas;
-José Lopes da Fonseca (8/03/1883; 22/04/1976). Barbeiro, funcionário da Escola do Magistério Primário de Coimbra, serenateiro, ensaiador de teatro infantil, actor amador, notável executante de violão de cordas de aço. Entre os anos 30 e 40 acompanhou frequentemente Flávio Rodrigues. Republicano e anticlerical, formado na linha ideológica do operariado coimbrão onde haviam militado figuras de proa como Adelino Veiga e António Augusto Gonçalves. Grande animador das serenatas fluviais futricas, terminadas por 1936. Colaborou com o Rancho do Pátio da Inquisição e Rancho das Tricanas de Coimbra, tendo figurado nas recolhas sonoras concretizadas por Armando Leça em 1940, registos onde canta a solo seu filho Rui Fonseca.
-Augusto da Silva Louro (1902-1927). Funcionário dos correios da Alta e executante de violão. Acompanhou Flávio Rodrigues e com ele gravou discos;
-Carlos da Silva Moreira (dito “Rouxinol de Coimbra”, 25/11/1904; 19/05/1976). Alfaiate de profissão, cobrador e funcionário municipal, tenor aplaudido, serenateiro e intérprete de canções populares. Foi acompanhado regularmente por Flávio Rodrigues;
-António Barbosa, ourives de profissão, acompanhador de Flávio Rodrigues em violão;
-José Maria dos Santos, de alcunha “Rei-Preto”, jornalista, funcionário da Biblioteca da Universidade, cunhado e acompanhador de Flávio Rodrigues em violão (15-08-1906; 19-05-1976);
-João de Oliveira Anjo. Músico profissional do exército português, nasceu em Ilhavo em 14 de Maio de 1916, tendo vindo para Coimbra em 1938. Genro de José Elyseu. Autor de músicas popularizadas como Morena dos Meus Abrolhos (1944). Conviveu com Flávio Rodrigues, Zé Trego, Manuel Eliseu (compositor, filho de José Elyseu), e com o mandador Calmeirão. Tocou clarinete nas Fogueiras do Largo do Romal. Fez serenatas na década de 1940, sendo responsaável pela divulgação de uma peça de Eric Coats (Lagoa Adormecida).
-Joaquim Casimiro Pessoa, cantor e serenateiro, cunhado de José Elyseu. Terá sido este cantor a vocalizar a primeira versão da Balada do Mondego (vulgo de Coimbra), numa serenata realizada em Penacova no ano de 1898, com Jose Eliseu na rabeca e Henrique Martins de Carvalho no violão;
-Joaquim Duarte Ralha, guarda livros da casa Martas & Companhia, guitarrista popular de relevo. Nasceu em Coimbra no dia 25 de Abril de 1911 e faleceu nesta mesma cidade a 4 de Maio de 1988;
-Fernando Rodrigues da Silva (19-01-1915; 2-12-1964), irmão de Flávio Rodrigues, barbeiro, executante de violão de acompanhamento, ensinante de violão e guitarra;
-António Rodrigues da Silva (circa 1870-1918), barbeiro e guitarrista, pai dos irmãos Rodrigues, ensinante de guitarra em afinação natural;
-José de Sousa Lopes (14-07-1913; 14-01-1987), filho de José Trego, funcionário bancário, membro do naipe dos violinos da Tuna Académica, executante de violão[5], com incontáveis actuações em arraiais sanjoaninos e serões de trabalhadores da antiga FNAT.

II.1 - Reconstituições
Em finais da década de 1980, o Grupo Folclórico da Casa do Pessoal da Universidade de Coimbra lograra recolher apreciável amostragem de espécimes tocados e cantados nas “esquecidas” serenatas fluviais futricas. Após uma série de ensaios preparatórios na sede provisória do Grupo, ao Colégio dos Grilos, foi levada a cabo uma primeira tentativa de reconstituição nos festejos da Rainha Santa, em Julho de 1990. Os elementos do Grupo atravessaram o rio numa barca, na direcção Choupalinho-Cais Velho, tendo realizado a serenata na rampa e escadarias do cais. A comissão de festas convidou o Grupo de Fados e Guitarras de Coimbra, constituído por João Moura (guitarra), José Santos (viola) e António Nogueira (voz) que nesse evento interpretou a vertente académica das serenatas.
Estava aberto o caminho para o aprofundamento e reflexão sobre a história das serenatas futricas, ao tempo veementemente negadas como possibilidade histórica por diversos relatos académicos oficiais e elementos activos da Associação dos Antigos Estudantes de Coimbra. A imagem da Canção de Coimbra de “capa e guitarra”, vista rudimentarmente como um “Fado de Coimbra”, solidamente massificada e cristalizada até 1960 mantinha-se imutável. Nessa imposição arbitrária e distorcida, omitia-se qualquer alusão aos contributos de elementos da Sociedade Tradicional Futrica (apesar de estarem vivos descendentes que a qualquer momento poderiam prestar testemunho), e parava-se nos alvores de 1960 negando todo o Segundo Modernismo da CC construído por agentes como José Afonso, Adriano Correia de Oliveira, Eduardo Melo, Nuno Guimarães, Luiz Goes, João Bagão, António Andias e outros. E se é verdade que nos programas televisivos dedicados pela RTP à CC entre 1978 e meados da década de 1980 se foram incluindo amostras soltas de obras e agentes do Segundo Modernismo, o mesmo se não dirá da prática da CC por cultores futricas.
No primeiro semestre de 1991, elementos do agrupamento académico Tertúlia Praxis Dixit apresentaram à direcção do Grupo Folclórico da Casa do Pessoal da Universidade um projecto de realização de uma serenata futrica na Alta, antecedido de debate. A ideia conheceu bom acolhimento. No dia 18 de Abril de 1991 teve lugar no Arquivo da UC um colóquio, onde foram intervenientes Manuel Louzã Henriques (“Canção de Coimbra: génese, evolução e confluência de culturas”), e António M. Nunes (“Canção de Coimbra: recolha, preservação e divulgação”, apresentando como bons exemplos as práticas de José Alberto Sardinha e Maria Antónia Esteves).
No dia seguinte, 19 de Abril, o Grupo Folclórico da Casa do Pessoal da Universidade levou a cabo uma hipótese de reconstituição designada “Serenata à Primavera”, no adro e escadarias da Igreja do Salvador, junto ao Museu Machado de Castro. Percebeu-se de imediato que o grosso do público posicionado acima dos 50 anos de idade trauteava em surdina quase todos os temas apresentados (algumas das compisições apresentadas contavam mais de 100 anos de existência).
Foram interpretados os seguintes temas:

-Esta Calçadinha (fragmento musical utilizado como indicativo instrumental. Canção popular, recolhida em 1870, cuja letra alude ao Largo do Romal);
-Jovens Sereias (valsa utilizada nas serenatas fluviais da década de 1890);
-Ó Querida , Gosto de Ti (modinha do século XIX, recolhida em 1878);
-A Toutinegra (balada do último quartel do século XIX, influenciada pela opereta);
-Fado do Rancho Alegre Mocidade (da Rua Larga, cantado no São João de 1907, com música de João Pinto Magalhães e letra de Augusto Pinto);
-Noite Serena (serenata da década de 1850, com música de José Dória, quadras de Camilo Castelo Branco);
-Ó Águia (Fado da Despedida do 5º Ano Jurídico de 1905-1906, música de António Dias da Costa e letra de Camilo Castelo Branco. Foi interpretado na récita de 1906 pelo cantor-guitarrista Custódio José Vieira, tendo grangeado invulgar sucesso em Coimbra e nos mais diversos pontos do país. Nas festas de São João de Junho de 1906 fez parte do elenco de peças cantadas e dançadas pelo rancho Alegre Mocidade da Rua Larga. O mesmo rancho voltou a interpretar Ó Águia nos festejos da Rainha Santa, em inícios de Julho de 1906, em cantorias na Praça da República e na serenata fluvial A única gravação de Ó águia, de que temos notícia, foi efectuada pelo tenor futrica Francisco Caetano em finais da década de 1920.
-Flores de Coimbra (canção de 1932, música de Ricardo Campos, letra de Abel Aguiar Otêda);
-Cruz de Cristo (letra e música de José Traqueia Bracourt. Composto entre 1922 e 1926, na sequência da viagem aérea de Gago Coutinho e Sacadura Cabral, conforme se pode deduzir pelo teor da letra. Não será posterior a 1926, uma vez que nas gravações discográficas de Maio de 1927 Artur Paredes já incorpora um breve fraseado musical deste espécime nas suas Variações em Lá Menor);
-Noite de Primavera (serenata recolhida em 1892, com música de Frederico de Silos e letra de Ernesto Rebelo);
-Balada do Mondego (música de José Elyseu, letra de Henrique Martins de Carvalho. Peça de 1898, popularizada pelo rancho do Pátio da Inquisição no São João de 1902 e serenata fluvial de Julho do mesmo ano).

O Grupo Folclórico da Casa do Pessoal da Universidade de Coimbra passou a realizar anualmente serenatas futricas, sob a direcção artística do Doutor Nelson Borges, entre 1990 e 1993. A actividade prosseguiu ao longo dos anos noventa, tendo por cenário o Arco de Almedina. Parte do repertório da serenata futrica do Grupo da Casa do Pessoal da Universidade veio a ser divulgado no CD “Flores de Coimbra”, Coimbra, AGITARTE, AGT 00399, ano de 1999 (Flores de Coimbra, Fado do Rancho Alegre Mocidade, Noite de Primavera, Sonhos Dourados, Despedida de Coimbra, Fado das Pedras, Oh querida eu gosto de ti).
Em 1994, o Doutor Nelson Borges fundou e passou a orientar o Grupo Folclórico de Coimbra, colectividade que manteve no seu projecto de realizações culturais uma serenata futrica anual nas escadarias da Igreja de São Tiago (Praça Velha). A título de exemplificação, foram interpretados na serenata de Junho de 2000 os seguintes temas: Ó Águia, Fado do Rancho Alegre Mocidade do Pavilhão da Rua Larga, Marcha das Rosas (música de José Eliseu, letra de Octaviano de Sá, 1907), Flores de Coimbra (música de Ricardo Campos, letra de Abel Aguiar Otêda, 1932), Flores Tristes (de José Delgado, século XIX), Às Estrelas (fado corrido), Filha do Gualdalquivir (música de Adelino Veiga, letra de Sousa Viterbo e Adelino Veiga, 1884), Fado do Largo de São João de Almedina (=Fado das Lapas, música de Francisco Menano, letra de Gustaf Adolf Bergstrom, 1910), Morena (música de Saldanha Júnior, letra de Henrique Martins de Carvalho, 1902), Não me deixe Meu Amor (canção recolhida da tradição oral), Tricana d’Aldeia (canção popular de inícios do século XIX, utilizada como indicativo), Noite de Primavera, Despedida de Coimbra (autoria anónima, recolhida em 1892).
Relativamente à Serenata Popular das Tricanas e dos Futricas, realizada pelo Grupo Folclórico de Coimbra nas escadarias da Igreja de São Tiago, na noite de 1 de Junho de 2001, pelas 23 horas, o programa oficial anunciava:

1 – Tricana d’Aldeia: indicativo instrumental, baseado numa canção popular da primeira metade do século XIX, muito em voga em Coimbra, Ponta Delgada e Vila Real;
2 – Marcha das Rosas: música de José das Neves Eliseu, letra de Octaviano de Sá, datada de 1907;
3 – Fado do Rancho Alegre Mocidade: música de João Pinto Magalhães, letra de Augusto Pinto, datado de 1907;
4 – Noite de Primavera: ária serenil, com música de Frederico de Silos, letra de Ernesto Rebelo, anterior a 1892;
5 – Fado do Largo de São João de Almedina: música de Francisco Paulo Menano, letra de Gustaf Adolf Bergstrom, datado de 1910. Trata-se da mesma melodia que António Menano viria a gravar na década de 1920, pese embora alterando o título original para Fado das Fogueiras, suprimindo o estribilho e introduzindo uma letra completamente diferente, da autoria do poeta Augusto Gil (Lisboa, 1928, Odeon 50.800 xxOg 674). Em recolhas de Costa Pinheiro e Carlos Caiado o título é Fado das Lapas. Augusto Camacho Vieira também gravou esta serenata em 1961 com António Brojo/Francisco Menano/Fernando Alvim. Por estranho que possa parecer o Dr. Francisco Menano aceitou sem reservas a letra de Augusto Gil;
6 – Sonhos Dourados: balada popularizada, música de José das Neves Elyseu, letra de Henrique Martins de Carvalho, datada de 1903. Na década de 1980 ainda era cantada por Walter Figueiredo (base da gravação instrumental de Artur Paredes conhecida por Balada do Mondego);
7 – Cruz de Cristo: canção popularizada, música e letra de José Traqueia Bracourt. O poema é uma homenagem a Gago Coutinho e Sacadura Cabral, cerca de 1922-1926;
8 – Às Estrelas: fado corrido popularizado;
9 – Marzurca Espanhola: instrumental popular, datável de finais do século XIX;
10 – Fado do Rancho Esperança: música do estudante Isidro Aranha, letra de João de Deus Ramos (Filho), datado de 1909;
11 – Barquinha Feiticeira: serenata popularizada, com música e letra de autor desconhecido, recolhida em 1898. Divulgada nas Ilhas do Pico e Faial, Pedras Salgadas (Chaves), Póvoa do Varzim e Coimbra;
12 – Ó Águia: fado da despedida do 5º ano jurídico de 1905-1906, estreado no Teatro Avenida em 1906. Música de António Dias da Costa, letra de Camilo Castelo Branco. Popularizado em Coimbra pelo Dr. Custódio José Vieira e pelo Rancho Alegre Mocidade da Rua Larga;
13 – Malmequer: canção popularizada, música de Lamartine Tito, letra de Octaviano de Sá, datada de 1907;
14 – Fado de Condeixa: música de Francisco Lopes Lima de Macedo Júnior, letra de Ernesto Donato, datado de 1907;
15 – A Madrugada: marcha popularizada, música de Francisco Costa, letra de P. P., datada de 1904.

A 7 de Junho de 2002, também nas escadas da Igreja de São Tiago, teve lugar a Serenata de Homenagem a José Elyseu (1872-1924). O repertório expressamente recolhido e ensaiado pelo Grupo Folclórico de Coimbra com vista à celebração do primeiro centenário da estreia oficial da Balada do Mondego (Já branca lua alveja a terra) anunciava:
1 – Balada do Mondego: música de José das Neves Elyseu, versos de Henrique Martins de Carvalho, 1902;
2 – Marcha das Rosas: música de José das Neves Eyseu, versos de Octaviano de Sá, 1907;
3 – Canção do Mondego: música de José das Neves Elyseu, versos de Augusto Pinto, 1907;
4 – Trigueiras da Beira Mar: música de José das Neves Elyseu, versos de Octaviano de Sá, 1907;
5 – Fado do Rancho Alegre Mocidade: música de João Pinto Magalhães, versos de Augusto Pinto, 1907;
6 – Beijo: música de José das Neves Elyseu, versos de Davim, 1901;
7 – Coimbra a Lisboa: música de José das Neves Elisey, versos de Henrique Martins de Carvalho, 1904 (conhecido como Chegam-se as Festas);
8 – Jóia Querida: música de José das Neves Elyseu, versos de Horácio Poiares, 1904;
9 – Balada de Coimbra: música de José das Neves Elyseu, versos de Tito Bettencourt, 1916;
10 – Sonhos Dourados: música de José das Neves Elyseu, versos de Henrique Martins de Carvalho, 1903;
11 – Ó Águia: música de António Dias da Costa, versos de Camilo Castelo Branco, 1906;
12 – Não Ames: música de José das Neves Elyseu, versos de Mário Monteiro e Henrique Martins de Carvalho, 1903;
13 – Marcha Popular: música de Ricardo Campos, versos de Alfredo Fernandes Martins, 1907(?);
14 – Chora a Cantar: música de José das Neves Elyseu, versos de Mário Monteiro, 1903;
15 – Barquinho Ligeiro: música de José das Neves Elyseu, versos de Henrique Martins de Carvalho e Antero de Quental, 1912;
16 – O teu Olhar: música de José das Neves Elyseu, versos de Mário Monteiro, 1907;
17 – Guitarra Geme: música de José das Neves Elyseu, versos de Henrique Martins de Carvalho, 1919;
18 – Marcha do Rancho Flor da Mocidade: música de José das Neves Elyseu, versos de Mário Monteiro, 1902;
19 – Balada de Coimbra (versão instrumental): música de José das Neves Elyseu com adaptação de Artur Paredes.

II.2 - Tipologia das serenatas coimbrãs
O ritual de serenata conheceu em Coimbra diferentes públicos, cultores e apreciadores. A sua prática militante ocorreu no interior da Sociedade Tradicional Futrica e na Sociedade Tradicional Académica. Sem prejuízo de outras classificações, ou mesmo de eventuais correcções, reproduzimos uma grelha tipológica elaborada em 1989 (“Serenatas Coimbrãs”, in Diário de Coimbra, de 18 de Novembro de 1989), cuja estrutura entendemos operacional.

Serenatas Futricas
-Serenatas de cortejamento (ditas de rua): com propósitos amorosos. Ritual masculino, integrando cantores e tocata reduzida, registado documentalmente na Alta pelo menos desde a 2ª metade do século XIX, com ocorrências na Baixa. Prolongou-se até à década de 1940. Instrumentos: flauta travessa, violão, viola toeira, guitarra, rabeca, bandolim, cavaquinho. Vozes masculinas de tenor e de barítono. Vestuário civil em voga na época.
-Serenatas fluviais: com propósitos, lúdicos, festivos e de homenagem (Rainha Santa Isabel, Casa Real, Academia). Ritual misto, tendo por cenário o rio Mondego, integrando cantadeiras, cantores e tocata completa. Ocorreu entre 1892 e meados da década de 1930. Vestuário masculino e feminino civil dito “domingueiro”.

Serenatas Académicas
-Serenatas de Ano Novo: com fins lúdicos, ocorreram entre a 2ª metade do século XVIII e a década de 1850, incluindo cantorias nas ruas e tabernas da Alta após o jantar, cortejo cantante até ao Penendo da Saudade, piquenique e alvorada. Instrumentos em voga como a viola de arame, a guitarra inglesa, o bandodim, o violão de seis ordens, o cavaquinho e flauta travessa. Vozes masculinas. Uso do uniforme académico de época.
-Serenatas Fluviais de Quintanistas: celebrativas da conclusão dos cursos de Medicina, Teologia, Direito e Filosofia. Mencionadas entre 1850 e 1900, embora possam ser anteriores. Instrumentos: flauta travessa, violão, viola toeira, rabeca, rabecão, bandolim, bandola, cavaquinho, pandeiro. Uniforme estudantil de época. Iluminações com archotes, balões e lanternas.
-Serenatas de Homenagem a grandes figuras: ritual pouco frequente, registado em 27 de Abril de 1862 (António Feliciano de Castilho, Coimbra), 8 de Junho de 1880 e 5 de Maio de 1881 (Luís de Camões, Coimbra), 1904 e 19 de Fevereiro de 1940 (actriz Adelina Abranches, Coimbra), 17 de Março de 1962 (Embaixador de Inglaterra, Coimbra), 4 de Junho de 1964 (Augusto Hilário, Coimbra), 6 de Maio de 1964 (Augusto Hilário, Viseu), 1968 (Cirurgião Christian Barnard, Coimbra), 26 de Julho de 1970 (Lucas Junot, Coimbra), 1970 (Papa Paulo VI, Castel Gondolfo), 30 de Junho de 1979 (Augusto Hilário, Viseu), 8 de Maio de 1999 (Edmundo de Bettencourt, Funchal).
-Serenatas Estudantinas: ritual com propósitos amorosos, vozes e tocata de tipo tuna. Também designadas por bandolinatas. Registadas documentalmente para o período balizado entre 1840 e 1890. Encontram-se mais próximas das suas congéneres espanholas, de raízes medievais (rondas), e das serenatas rurais e urbanas portuguesas provinciais.
-Serenatas de Cortejamento: configuram a tipologia mais frequente (serenata de rua), da qual veio a resultar a imagem cristalizada da Canção de Coimbra, sendo manifestas as confusões entre a parte e o todo. Serenata munida de cantores e instrumentistas, usualmente realizada debaixo de uma janela. Na sua fase mais recuada era um desfile (o “passar da serenata”), com lanternas ou archotes, a formação em andamento lento, os tocadores com os instrumentos presos aos ombros por cordéis. Instrumentos: flauta travessa, violão, viola toeira, guitarra, bandolim, rabeca, ferrinhos, cavaquinho. Na sua cristalização derradeira, esta tipologia impôs o violão de acompanhamento e a Guitarra de Coimbra, com a formaçã de capas traçadas.
-Serenatas Monumentais: ritual de tipo festivo, ou espectáculo, vulgarizado a partir de 1945, nas escadarias do pórtico principal da Sé Velha, enquanto momento marcante da abertura da festa da Queima das Fitas. Tem sido aplicado a outros eventos celebrativos e festivos (1º Centenário da AAC, 1987; 7º Centenário da Fundação da Universidade, 1990; Festa das Latas e Imposição de Insígnias, etc..). Prática transladada para a Universidade do Porto na década de 1950, passou a figurar na maioria das festas de ensino superior, um pouco por todo o Portugal continental e insular, a partir da década de meados da 1980.
-Serenatas Satíricas: ritual antigo, caído em desuso por volta de 1900. Alicerçado em descantes satíricos, berros, apupos, assuadas a lentes. Praticado na década de 1850 por João de Deus. Na década de 1860, o Mata Carochas (Antão de Vasconcelos), um açoriano e um Paulo, oriundo da Madeira, o Gusmão (flauta), organizavam as “impagáveis serenatas”. O estudante açoriano imitava um leque assinalável de “vozes de animais”, além dos sons do cavaquinho. O madeirense imitava o trombone. O grupo actuava entre a Alta e o Penedo da Saudade, parando no alto do arruinado castelo para experimentar toda a sorte de ecos, gritos, assobios, inflamadas declamações camonianas e de outros poetas. Na esquina do Colégio de São Bento retomavam-se os ecos e gritos, cantado-se o parodial D. Sancho[6]. Cerca de 1900, D. Tomáz de Noronha (versos), Pad Zé (música) e outros estudantes residentes na Ladeira do Seminário atormentaram o Doutor Mota, lente de Medicina com berreiros e chacotas à pecha historiográfica do docente: “Doutor Mota! Doutor Mota! Quando foi Aljubarrota? E de quem foi a derrota?”[7]

II.3 – Tipologia de Instrumentais
As peças instrumentais coimbrãs são vulgarmente denominadas por “guitarradas”, termo que não traduz de forma clara e rigorosa a multiplicidade dos desempenhos concretizados pelos instrumentistas activos na cidade de Coimbra entre a 2ª metade do século XVIII e a transição para o século XX. Procurando efectuar breve périplo às situações detectadas ao longo do século XIX, temos:

-instrumentais com tocata tradicional completa: incluíam peças instrumentais propriamente ditas e variações sobre melodias cantáveis, de que são exemplos valsas, polcas, contradanças, mazurcas, marchas, lunduns, Tricana d’Aldeia, Esta Calçadinha, Filha do Guadalquivir. Saliente-se a presença de instrumentos como violas toeiras, guitarras, violões, rabecas, cavaquinhos, flautas, rabecões, ferrinhos, pandeiro, bandolins, em acentuada diversidade de prestações e de timbres. Uma das características destes instrumentais residia na média e longa duração das execuções ao vivo que chegavam a durar 10, 15, 30 ou mais minutos em actuações directas.
-instrumentais de tipo estudantina/tuna: alicerçados sobre peças de tipo valsa, polca, tango, jota, passe-calle, marcha, mazurca, melodias populares, com emprego predominante de bandolins. Também denominados mandolinatas e estudantinas. Tiveram o seu período áureo no século XIX.
-instrumentais em que os elementos predominantes eram as violas toeiras, o violão e a rabeca. Incidiam sobre canções populares, minuetos, lunduns, quadrilhas, valsas, tangos, marchas, polcas, serenatas, fados, trechos de música clássica.
-instrumentais em que os elementos predominantes eram guitarras. Incidiam sobre serenatas, temas populares, fados, baladas, barcarolas, valsas, tangos, jotas, contradanças, marchas, variações sobre determinados tons em maior e menor. De todas as modalidades descritas, esta foi a se tornou mais conhecida (guitarradas) e logrou impôr-se às sensibilidades e outivas. Mas, não obstante o triunfo da guitarrada desde o último quartel do século XIX (com lamentável omissão dos solos na Viola Toeira e até na viola de acompanhamento, sendo que para a última apenas se conhecem incursões de Rui Pato), quando se trata de procurar uma tentativa de caracterização deste género artístico nos dicionários, do que se fala , só e sempre, é de canções musicais estróficas anteriores ao Segundo Modernismo.
NOTAS
[1] Testemunho oral prestado por Maria José Sousa Lopes Morais, filha de José Lopes da Fonseca, em 30 de Junho de 2001.
[2] Siga-se a crónica de Domingos Guimarães, “Festas da Rainha Santa”, in Branco e Negro, nº 15, de 12 de Julho de 1896, pág. 9, com fotografia da imagem. A escultura de Teixeira Lopes foi pintada pelo técnico Arnaldo Barbosa.
[3] Grupo activo em Coimbra na década de 1930, com sede nas traseiras da Tasca do Zé das Salsichas, onde postriormente se edificou a Caixa Geral de Depósitos. Incluía executantes de bandolins, clarinete, banjo e violões (Zé Trego, José Caetano), e actuava em festas populares de Coimbra e concelhos vizinhos. Este elementos foram reconfirmados em Maio de 2003 por José António Caetano, filho do cantor Francisco Caetano, e sobrinho do tocador José Caetano. A referida serenata fluvial do Grupo Salsichon ficou famosa na memória oral dado que no momento do desembarque dos tocadores José Caetano caiu desamparado ao Mondego tendo levantado acima da cabeça o seu famoso violão com 3 bordões extra-caixa de ressonância.
[4] A crítica de 1902 é suave e amena, quando comparada com o violento ataque estampado no artigo “Fogueiras”, do “Diário de Notícias”, de 3 de Julho de 1924. Neste último, o signatário deprecia a transformação das antigas danças de terreiro em ranchos ensaiados à porta fechada que, pelo São João, se exibiam em pavilhões de madeira. A crítica estava longe de constituir novidade, pois remontava à década de 1870 e aos tempos em que Adelino Veiga ensaiara o Rancho do Largo do Romal. Mas o articulista ia mais longe. Apostrofando a actuação de um rancho infantil, activo na Baixa, que nas festas de 1923 se munira com um “piano”, arremetia contra “violinos, flautas, rabecões e outros instrumentos de orquestra”. Este relato foi transladado por José Leite de Vasconcelos, “Etnografia Portuguesa”, Volume VIII, Lisboa, INCM, 1982, pág. 383, e aparece retomado por José Alberto Sardinha, “Viola Campaniça. O outro Alentejo”, Vila Verde, Tradisom, 2001, pág. 75. Conforme tive o ensejo de anotar em carta ao Dr. José Alberto Sardinha, o relato de 3/07/1924, na sua ânsia de denunciar os “atropelos” à tradição, omite que os “instrumentos de orquestra” citados já eram recorrentemente utilizados nas serenatas e Fogueiras da segunda medade do século XIX (excepção feita ao piano).
[5] Para uma primeira tentativa de identificação de cultores futricas da Canção de Coimbra cotejem-se os dados presentes no catálogo "Centenário do nascimento do guitarrista Flávio Rodrigues da Silva (1902-2002)", Coimbra, Edição da Câmara Municipal de Coimbra, 2002. O levantamento biográfico e fotográfico em questão fica a dever quase tudo a Carlos Alberto Dias, membro da formação informal Os Salatinas.
[6] Henrique Antão de Vascocelos, "Memórias do Mata Carochas", Porto, Empreza Litteraria e Typographica Editora, s/d., págs. 338-339.
[7] D. Tomáz de Noronha, "De capa e batina. O Pad Zé. Ditos e partidas do grande boémio", Lisboa, J. Rodrigues & Companhia, 1928, págs. 116-117.

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