terça-feira, abril 04, 2006

REZAS À NOITE
Música: José Augusto Coutinho de Oliveira (1894-1931)
Letra: José Marques da Cruz (1888-1958)
Incipit: No nosso Portugal é uso antigo
Origem: Coimbra
Data: 1919





















No nosso Portugal é uso antigo,
Depois da ceia alegre, em chilreada,
Fazer-se à noite a reza costumada,
P’ra que o Senhor nos livre do Inimigo.

Rezava o Pai o terço co’a piedade
Que já seus pais outrora tinham tido:
E num tom religioso e comovido
Respondiam os filhos com bondade.

E a Maria, uma moça donairosa,
Balbuciava baixinho e descuidosa
Esta prece, que só um anjo tem

Quando a caminho para Deus se vai:
« Santa Maria, mãe de Deus, rogai,
Rogai... p’lo nosso amor, p’ra sempre. Amen.»

Canta-se o texto de seguida sem repetir verso algum.
Esquema do acompanhamento:
1ª /2ª quadras: Lá menor /// Lá menor, 2ª Lá /// Ré menor, Lá menor /// 2ª Lá, Lá menor;
1º terceto: Ré menor, Lá menor /// (Lá menor), 2ª Lá /// 2ª Lá
2º terceto: (2ª Lá), Lá menor /// Lá menor, 2ª Lá, Lá menor, Ré menor, Lá menor, /// Ré menor, Lá menor, 2ª Lá, Lá menor, 2ª Lá, Lá menor

Informação complementar:
Lied vulgar e erroneamente tradicionalizado sob o título “Avé-Maria”. A edição musical deste soneto data de 1919 e foi feita pela casa Armando de Sousa, então sita na Rua Ferreira Borges, 174, em Coimbra. O título original é RESAS À NOITE (sic), tal qual consta das novidades musicais impressas pela referida casa, nos registos fonográficos de finais da década de 1920, bem como na obra poética dada à estampa por José Marques da Cruz em 1911.
O primeiro grande divulgador desta composição, em Coimbra, terá sido António Menano, num ciclo artístico marcado por campanhas avessas ao “chamado Fado de Coimbra”. As inflamadas diatribes de homens com influência na cultura local, como um Manuel da Silva Gaio (amnésico quanto às letras que dera a musicar a Alexandre Rey Colaço na década de 1890), não faziam desarmar António Menano, cujo repertório multifacetado podia facilmente bolinar em direcção a composições alternativas de Ruy Coelho, José Coutinho de Oliveira, Alberto Sarti, Condessa de Proença-a-Velha e Alexandre Rey Colaço. António Menano interpretaria este lied em compasso 4/4 e tom de Si Menor, versão que certamente transmitiu ao “seu afilhado” Armando Goes em 1924.
Soneto gravado primeiramente por Armando do Carmo Goes, em Lisboa, na His Master’s Voice, por volta de 5 de Setembro de 1929, acompanhado por Afonso de Sousa em violão de cordas de aço. A referida matriz não chegou a ser editada em disco, tal como aconteceu com o soneto DOBADOIRA. Dos três sonetos que Armando Goes gravou, apenas Noite de Luar (Eu tive um sonho, um sonho de encantar) foi editado em disco. O estudante de Ciências, compositor, orfeonista, sócio da TAUC, e regente, D. José Pais de Almeida e Silva, também gravou uma matriz deste soneto na His Master’s Voice, acompanhado por instrumentistas não identificados, a 5 de Setembro de 1929. A referida gravação nunca chegou a ser comercializada, podendo estar na origem da confusão autoral que costumeiramente tem persistido em associar o nome de D. José Pais ao lied “Rezas à Noite”. Trata-se de um erro sistemático/confusão autoral presente na discografia coimbrã que importa denunciar e corrigir.
O autor da letra, José Marques da Cruz, nasceu em Leiria no ano de 1888, tendo falecido no Brasil no ano de 1958. Poeta alinhado pela corrente nacionalista em voga entre finais do século XIX e inícios do século XX, cursou Direito na UC entre 1908-1912, tendo sido colega de Francisco Menano. Ter-se-á domiciliado no Brasil pouco depois da conclusão do curso, país onde trabalhou como docente universitário. Ainda estudante publicou a obra “Liz e Lêna”, Coimbra, França Amado Editor, 1911, onde constam poemas que vieram a ser postos em música, como “Canção da Nora”, “Rezas à Noite”, “Carta da Aldeia” e “Máguas do Estudante” (Cf. Francisco Menano, in “Fado da Despedida do 5º Ano Jurídico de 1912, vulgo “Fado do 5º Ano”= “Fado Triste”).
Figura prestigiada da cultura portuguesa, injustamente desconhecido em Coimbra, José Augusto Coutinho de Oliveira (Luanda, 1894; Lisboa, 1931), pertenceu ao curso que se formou na Faculdade de Medicina da UC em 1918. Colaborou, com José Nevil Pinto da Cunha, na partitura da récita dos quintanistas de Medicina de 1918 “Lux Moritura”, para a qual também escreveu a “Valsa da Meia Noite”, com versos de Luís Ibérico Nogueira (A noite estende o seu manto).
Por um “catálogo” impresso no verso da partitura volante de “Carta da Aldeia”, com data de Setembro de 1919, se pode constatar que José Coutinho de Oliveira era um compositor respeitado e muito vendido através da casa Armando Sousa, sita em Coimbra, na Rua Ferreira Borges, nº 174. Estavam então publicadas: “A Canção do Alecrim” (versos de Mota Cabral), “O São João” (versos de Mota Cabral), “Carta da Aldeia” (versos de Marques da Cruz), “Janeiro” (versos de Marques dos Santos) e “Presunção e Água Benta” (versos de Caetano Beirão). Estavam no prelo: “Último Fado” (versos de Eugénio Sanches da Gama), “Na Romaria” (versos de Mota Cabral), “Romance das Estações” (versos de Luiz Cardim), “Rezas à Noite” (versos de Marques da Cruz) e “A Sorte Grande” (versos de Eugénio Sanches da Gama). Já formado, Coutinho ainda musicou a partitura da récita dos quintanistas de Medicina de 1920, “Da Parvónia ao Bacocal”. Assistente da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, Coutinho continuou ligado à composição musical, nomeadamente a revistas e operetas como “Maria da Fonte”, “Flor da Murta”, “Margarida vai à Fonte”, “A Grã-Duquesa e o criado de quarto”, “O Sonho do Pobrezinho”, “Serenata do Diabo”, etc.. Destacou-se ainda como tradutor e Director da Sociedade de Escritores e Compositores Teatrais Portugueses (actual SPA). Não obstante a inacessibilidade do grosso das composições referidas, as opções poético-literárias supra inventariadas fazem-nos situar Coutinho de Oliveira na corrente estética naturalista/nacionalista ainda fortemente representada em Coimbra e Portugal por via da pintura (José Malhoa), da escultura, do azulejo (Jorge Colaço), da arquitectura (Raul Lino), da produção musical (Ruy Coelho, José Viana da Mota, Antero da Veiga), e da poesia (António Correia de Oliveira, Afonso Lopes Vieira, Alberto de Oliveira, Júlio Brandão, Marques da Cruz).
Composição gravada por Luiz Goes, em Coimbra, nas instalações do antigo Emissor Regional, no ano de 1952, sob o falso título de “Avé-Maria”, acompanhado em 1ª e 2ª guitarras de Coimbra de 17 pontos por António Brojo e António Portugal e, em violões de cordas de aço por Aurélio Reis e Mário de Castro: disco de 78 rpm Melodia, 15.096 – F.P.D. 216. No disco figura o nome de D. José Paes de Almeida e Silva como autor da música, o que não está correcto, e também a inaceitável tentativa de classificação “fado-canção”. Luiz Goes interpreta este lied em compasso quaternário (4/4) e tom de Lá Menor. Atendendo às limitações dos materiais de captação sonora utilizados pela editora, saliente-se o bom desempenho vocal protagonizado por Luiz Goes, no caso vertente servido por eficaz arranjo de guitarra idealizado por António Brojo.
A letra, fixada de acordo com o texto original impresso em 1911, é de pendor nacionalista e conservador, facto que não diminui o notório valor musical desta composição. Marques da Cruz narra um bucólico serão familiar, no qual um pai de família, católico, reza o terço com os filhos. A figura da jovem Maria é demasiado fugaz para conjecturarmos com segurança se é a mãe e esposa ou antes uma criadita doméstica que acompanha a reza. Em nossa opinião, esta "moça donairosa" é a criada de servir.
Vale a pena recordar que a Revolução de 5/10/1910 procedera à expulsão violenta dos jesuítas, seguindo-se em Abril de 1911 a tão contestada Lei de Separação das Igrejas do Estado. Tudo isto nos leva a pensar que a letra de “Rezas à Noite”, publicada em 1911, a agregação da dita letra à música de Coutinho de Oliveira (1919) e a gravação discográfica por Armando Goes (1929), constituem três tempos fortes na história de uma composição que se pode situar no rescaldo das reacções católicas à Questão Religiosa da 1ª República.
Esta matriz foi editada em extended play (EP Coimbra – Luiz Goes, Melodia, EP-85-6); também em long play (LP Coimbra, Alvorada, LP-04-17; LP Coimbra, Alvorada, ALD 503; e LP Coimbra, Aquila, AQU 02-52, editado em 1985). Disponível em compact disc:
-CD “Fados e Guitarradas de Coimbra”, Vol. I, Movieplay, MOV. 30.332/B, compilação de 1996;
-“Luiz Goes. Canções para quem vier. Integral (1952-2002)", Lisboa, EMI-Valentim de Carvalho, 7243 5 80297 2 7, ano de 2002, cd nº 1, faixa nº 3, com ficha técnica correcta (salvo a errada indicação dos estúdios do Emissor Regional do Porto para local de gravação da obra).
Transcrição musical: Octávio Sérgio (2006)
Textos: José Anjos de Carvalho e António M. Nunes
Agradecimentos: Dr. Afonso de Sousa, José Moças (Tradisom)

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