segunda-feira, julho 24, 2006

Carlos Paredes - A magia da guitarra aliada à lúcida memória das coisas

A proposta era a de Carlos Paredes nos falar do seu album ES­PELHO DE SONS, recentemente editado e ao mesmo tempo relembrar José Afonso através da memória, das pequenas e gran­des histórias vividas em comum.
Carlos Paredes não aceitou o jogo. Quis falar e falou, quase só sobre José Afonso - “um grande amigo, um homem que marcou a sua geração” - relembrando momentos, acentuando facetas menos conhecidas.
”O José Afonso era um cantor ambulante, um músico ambulante no melhor sentido da palavra. Era um homem que oferecia a sua música aqui e além, onde era possível ter público. O José Afonso chegou a cantar em cima duma árvore, em cima dum camião. O que ele se propunha dar às pessoas não era só a sua arte de cantor. Tinha também por objectivo divulgar ideias, esclarecer as pessoas, levá-las a conversar sobre a vida”.
A guitarra portuguesa aparece quase sempre ligada ao fado. Carlos Paredes é um homem cuja tradição entronca na do fado de Coimbra. José Afonso bebeu dessa mesma fonte, como de muitas outras, mas, no dizer de Carlos Paredes, ele realizou-se muito melhor na balada.
”As apreciações que se faziam em Coimbra eram à voz, à ampli­tude da voz, à força da voz. Dizia-se que fulano tinha uma voz extensa, uma voz forte. Ora o José Afonso não era bem um cantor que correspondesse a estas características e precisamente por isso, saiu-se muito melhor nas suas baladas do que no fado. Mas as suas ligações a Coimbra eram bem fortes. Ocasião houve em que achou que havia figuras do fado de Coimbra que lhe mereciam todo o respeito e que, em certa medida, estavam na mesma linha que ele trilhara. Foi o caso de Edmundo de Betten­court do qual dizia sér um cantor progressista e inovador, e do meu pai que ele gostava muito de ouvir tocar. Acabou por gravar um disco de fados de Coimbra que foi uma forma de mergulhar nas origens, homenageando ao mesmo tempo uma tradição fa­dista que o havia inspirado, lírica mas não piegas.
O acompanhamento preferencial de José Afonso era a viola; Carlos Paredes vê nisso uma atitude inovadora, dado que a gui­tarra portuguesa limita o cantor.
”Eu não sou contra a guitarra portuguesa, como é lógico, visto que a toco, mas José Afonso tinha absoluta razão. Eu penso que a guitarra portuguesa molda o cantor. O cantor que canta ao som da guitarra portuguesa, quer queira quer não, acaba por ser in­tegrado num certo estilo. O José Afonso saíu disso. Compreendeu que a guitarra portuguesa o desviaria da busca de uma canção que correspondesse à sua própria personalidade. Suprimiu por­tanto a guitarra e sentiu-se mais liberto acompanhado pela vio­la”. E, aparentemente, mudando de assunto:
”José Afonso foi o marco de toda uma geração de cantores, num tempo em que a canção de protesto, a balada, foram bandeira e estandarte dos que procuravam a ruptura com o nacional-cin­zentismo” .
”Levou atrás de si outros cantores, e pode dizer-se que toda uma geração foi por ele inspirada. Surgiram assim nomes que dignifi­caram a canção em Portugal, a ponto de se ter criado esta divisão: os que correspondiam ao nacional-cançonetismo e os cantores de intervenção.
O nacional-cançonetismo era entendido como uma forma de comodamente se ignorarem os problemas, de se cantarem coisas que não fossem incómodas. A canção de intervenção, essa tinha uma capacidade de análise da realidade portuguesa, uma reali­dade dramática naquela altura”.
Para Carlos Paredes, em José Afonso as rotas da vida e da canção misturaram-se de forma exemplar.
”Nós nunca saberemos se foi através do percurso que escolheu para a canção que José Afonso encontrou o seu caminho da vida, ou se foi por ter escolhido um determinado sentido da vida que optou por um determinado tipo de canção. Parece-me que as duas coisas estão bastante ligadas. O José Afonso procurou a verdade e a verdade, naquela época, obrigava a trilhar esse ca­minho de denúncia com muita coragem, confrontando-se com perigos constantes. Mas ele era um homem de coragem, inteli­gente, interessado no futuro das pessoas, no mundo que o ro­deava e tudo isso traduzia nas suas canções. Algumas delas tor­naram-se autênticos símbolos que todos nós trauteávamos em determinadas ocasiões, porque tinham a ver com a existência de todos nós”.
”Penso - diz, rematando com um gesto a afirmação - que, com os anos, muitas das suas canções virão à memória a propósito de qualquer coisa”. E acrescenta:
”Ele disse-me um dia que gostava das minhas músicas, do meu reportório. Apreciava a alegria daquelas músicas, sentia profun­damente a vivacidade popular das canções.
Nesta conversa com o José Afonso pressenti que ele, já naquela altura, procurava fugir à melancolia do fado de Coimbra, àquele saudosismo a que era avesso, e fugindo da melancolia encontra­va-se com o povo, com o folclore. Talvez tenha sido por isso que a sua música se tornou tão universal.
”E Carlos Paredes dá conta do apreço com que eram ouvidas as canções do Zeca em alguns países por onde andou.Três dedos mais de conversa. Para o entrevistado já é tempo de dar a José Afonso o lugar devido, como figura nacional, ímpar na história da canção portuguesa.
”Eu participei em algumas festas de homenagem a José Afonso, mas devo-lhe dizer que essas homenagens deviam partir do pró­prio Estado, das próprias entidades oficiais. Independentemente de se ter ou não princípios idênticos aos seus, as pessoas devem reconhecer que José Afonso lutou por qualquer coisa que interes­sava a todos e que, criticando a vida nacional, estava a fornecer matéria para que se formasse uma ideia mais concreta das reali­dades. E isso beneficiou toda a gente, de esquerda como de di­reita. Nem sempre se entende assim, as pessoas estão fanatica­mente agarradas às suas idiossincrasias e não pensam que a ver­dade possa ser útil.
”A conversa flui. Um olhar ainda para “Espelho de Sons”, disco de Carlos Paredes recentemente editado, quebrando um “jejum” de quinze anos. “Espelho de Sons” é uma espécie de apanhado de ligações - diz - de circunstâncias, e sobretudo a presença do rio. “Com o meu conhecimento de Lisboa posso dizer que o Tejo é uma evidência constante na cidade (tal como o Mondego em Coimbra), que fatalmente acaba por influenciar os seus mú­sicos e que me influenciou a mim.
O “Espelho de Sons” é esta relação da guitarra ou do guitarrista com o seu mundo, o mundo em que vive, com quem convive, os seus problemas, as suas queixas.
”A conversa chegou ao fim. Uma última observação: “A obra de José Afonso é para ouvir no seu conjunto.
Cada canção corresponde a uma faceta, a uma característica diferente da sua maneira de ser. É uma obra virada para o futuro” .

Carlos Júlio in Revista nº2 da AJA, 1988

relojes web gratis