quarta-feira, julho 12, 2006


João de Deus Posted by Picasa
João de Deus Ramos (1830-1896), ou João de Deus PAI, é unanimemente considerado um dos mais lendários boémios da Academia de Coimbra. Nesta imagem de 1855, surge fotografado de Capa e Batina, calção, meia alta e gorro, com farta bigodaça, ao lado do seu colega e amigo José de Sousa Vilhena. João de Deus arrimou a Coimbra em 1849, com o intuito de concluir os estudos preparatórios no Seminário Episcopal. Nesse mesmo ano acabava de formar-se em Medicina o notável executante de Viola Toeira, José Dória. Diploma obtido, João de Deus matriculou-se na Faculdade de Direito da UC no ano lectivo de 1849-1850, tendo assinado nos documentos de matrícula João de Deus NOGUEIRA Ramos, em homenagem ao seu padrinho de baptismo.
Estudos interrompidos, regressou à UC em 1851-1852. Só viria a bacharelar-se em 1859. Entre 1859 e 1862 residiu com regularidade em Coimbra, cidade onde se destinguiu como poeta, jornalista e tradutor.
Que João de Deus era beberrão, indolente, cábula, poeta repentista e satírico, noctívago, tocador de "banza", protagonista de cantorias, tudo isso é bem sabido. Que músicas interpretava e que cordofone tocava, aí reinam a confusão e a mistificação resultantes da ausência de estudos e do repisar acrítico de afirmações profundamente envelhecidas.
Importará saber que João de Deus foi, entre outras coisas, um excelente desenhador e um anedoteiro de truz. A este propósito, torna-se útil revisitar, de Manuel Teixeira Gomes, "Desenhos e anedotas de João de Deus". Quanto ao repertório musical, João de Deus dominava as modas em voga no folclore de Coimbra, como o Ladrão, o Manuel Ceguinho, o Malhão e o Água leva o Regadinho, peças essas que utilizava a título de descantes, com letras de sua autoria. Conhecia e interpretava as modas "goliardas", ou o cancioneiro estudantil satírico e de convívio, como os anfiguris, o Torradinhas com Manteiga, Era o vinho Meu Bem era o Vinho, Quitollis. Também dominava as baladas, as modinhas, os lunduns e as romanças que ao tempo eram prato forte nos salões e serenatas.
Uma das peças que mais recorrentemente interpretava era o CHORADINHO DE COIMBRA, uma curiosíssima canção com refrão que conseguimos resgatar em 2003 a partir do repertório do cantor Francisco Caetano (assinalado nas recolhas orais pelo Doutor Nelson Borges). Do reportório comum de serenata faziam ainda parte, nessa época, a Moreninha, a Raptada e a Tricana d'Aldeia. Iam gerando furor a Noite de Encanto, o Noivado do Sepulcro, Meu Anjo Escuta e a Partida, espécimes onde a assinatura do estudante de Direito e poeta Soares de Passos tinha assinalado peso.
Nenhum tipo de FADO fazia parte das opções artísticas de João de Deus. Nem o fado narrativo (décimas) em lamentoso modo menor, nem o popularíssimo FADO DA SEVERA, nem o elementar Fado Corrido, nem os fados coreográficos tão dançados nas Fogueiras de São João da Alta Salatina. Entrevistado, muitos anos após a conclusão do curso, João de Deus foi peremptório neste assunto. Enquanto estudante nunca cultivou qualquer tipo de FADO, visto que este género musical era considerado pelas pessoas de bem (e nas pessoas de bem deveriam incluir-se os estudantes universitários) um produto marginal, identificativo de prostitutas, criminosos e mendigos ambulantes. Repare-se que João de Deus não negou que o FADO fosse amado e cultivado em Coimbra. Limitou-se apenas a negar que o tivesse praticado, rejeição que encontramos ainda muita viva nas elites estudantis da década de 1860.
Outra mistificação ligada a João de Deus, enquanto agente da Galáxia Sonora Coimbrã, prende-se com a aparentemente inquestionável certeza quanto ao cordofone habitualmente dedilhado pelo poeta. Em todas as obras impressas onde se fala de João de Deus, antigas e recentes, repisa-se que foi tocador de "guitarra". Este dogma da "guitarra" radica no facto de João de Deus se identificar e de ter sido identificado como tocador (parece que bastante apreciável, embora inferior a José Dória) de BANZA.
Como os escritos foram produzidos em contexto do Fado (de Lisboa) e em Lisboa a guitarra era vulgalmente designada por "banza", deduziu-se erroneamente que João de Deus havia sido guitarrista. Sendo certo que nos meios fadísticos era comum designar-se a guitarra por "banza", o mesmo instrumento também conhecia outros mimos populares como BANDURRA e até FARRUSCA (Coimbra). Há que ter certas cautelas com as ambivalências do vocabulário, pois se não soubessemos que nos séculos XVIII e XIX a guitarra-cítara era identificada como "bandurra", cairíamos no logro fácil de invocar a bandurra espanhola ou até a Viola Beiroa (popularmente chamada de Bandurra na Região de Castelo Branco).
Em entrevista, o próprio João de Deus esclareceu que nunca tocara guitarra no tempo de estudante, só se tendo interessado pela guitarra já radicado em Lisboa, pelas décadas de 1870-1880. Então que cordofone tocava João de Deus? Teófilo Braga, recolector e estudioso da obra de João de Deus dá a resposta, de forma clara e inequívoca. João de Deus tocava "viola de arame", isto é, Viola Toeira. A mesma resposta é confirmada pelo admirador de João de Deus, Reis Dâmaso, no texto "João de Deus e a sua obra". Redescobrir João de Deus implica saber que na Coimbra de oitocentos o cordofone popularmente designado por BANZA era a Viola Toeira e não a guitarra, sobretudo porque nos meios conimbricenses o uso da Guitarra Inglesa (e sucedâneos actualizados) tendeu a prolongar-se no tempo.
Por testemunhos credíveis, registados após a morte do poeta, sabe-se que ao sair de Coimbra em 1862, João de Deus levou a sua Viola Toeira, instrumento que manteve e tocou regularmente em casa. Também se sabe que algumas horas antes de falecer, a 9 de Janeiro de 1896, pelas 13 horas, pediu aos familiares que lhe trouxessem a sua viola (declarações de Frederico Alves). Dedilhou-a pela derradeira vez no quarto, reconheceu que o fim se aproximava e submeteu-se às consultas dos médicos Carlos Tavares (9/10/1896) e Sousa Martins (10/10/1896). Faleceu na sua casa de Lisboa, pelas 21:45 h do dia 10 de Outubro de 1896.
Caso semelhante a este apenas conhecemos o de Carlos Paredes que nos anos terminais via e acariciava a sua guitarra de estimação.
AMNunes

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