sábado, agosto 12, 2006


"Aliciação..." Posted by Picasa
Quem entrar na sala de audiências do Tribunal Judicial da Figueira da Foz deparará com uma tapeçaria mural de grandes dimensões, cujo título é "Aliciação das populações, entre Coimbra e a Figueira da Foz, pelo académico Zagalo, para apoiarem os ingleses desembarcados em luta com os invasores franceses."
O tribunal, da autoria do arquitecto Raul Rodrigues Lima, foi construído com mão de obra prisional e solenemente inaugurado pelo Ministro da Justiça Antunes Varela a 15 de Agosto de 1961. Assinou o cartão da tapeçaria o pintor Renato Torres (1961), tendo a execução técnica corrido por conta da Manufactura de Tapeçarias de Portalegre.
Não está apurado se o tema foi indicado ao pintor directamente pelo Ministro da Justiça, se pelo Presidente da Câmara Municipal da Figueira da Foz. Seja como for, e à semelhança do que se passou em tantos outros tribunais, trata-se de cristalizar e sacralizar plasticamente um momento considerado relevante em termos de história local, do qual se extraíria uma lição de boa moral. Esses valores são o orgulho nacional, a união em torno da defesa da soberania e o heroísmo.
Para o que nos importa, o título da obra é excessivamente longo (não se encontra legendada, o que dificulta a identificação imediata), contendo a tapeçaria algumas incorrecções iconográficas de monta.
Junot rompera a linha fronteiriça a 19 de Novembro de 1807, seguindo-se a fuga da família real e a ocupação de Lisboa no dia 13 de Dezembro. A 18 de Junho de 1808 a população do Porto amotinou-se contra os invasores, organizando resistência em torno do bispo D. António de Castro. Seguiram-se focos de insurreição em Chaves, Bragança, Braga, Melgaço e Vila Pouca de Aguiar. Estudantes vindos do Porto chegaram a Coimbra no dia 23 de Junho e logo fomentaram o levantamento contra as forças napoleónicas ocupantes. Tomou-se o aquartelamento francês alojado no Colégio de São Tomás (actual Palácio da Justiça), foram descobertos os brasões do reino na Câmara Municipal e Mosteiro de Santa Cruz e iniciou-se o fabrico de munições no Laboratório Químico da UC.
Optando por uma estrutura tripartida vincadamente figurativa (a obra deveria ser de descodificação imediata), Renato Torres coloca no centro da tapeçaria o momento fulcral em que os estudantes da UC se organizaram em torno do estudante Bernardo Pereira Zagalo e marcharam de Coimbra para o Forte de Santa Catarina na Figueira da Foz.
Zagalo arregimentou 40 praças, sendo 25 estudantes voluntários e, na tarde de 25 de Junho de 1808, avançou em direcção a Tentúgal e Montemor-o-Velho. Com os povos vindos de Coimbra, Tentúgal, Carapinheira e Montemor, armados com foices, pás, enxadas e forquilhas, o destacamento atingia 3.000 homens quando na tarde de 26 de Junho se começou a abeirar do Forte de Santa Catarina.
Zagalo não foi o único oficial a distinguir-se. No levantamento das populações desempenhou papel de relevo o sargento António Cayolla. A Torre da UC funcionou como centro de emissão de mensagens, através de toques de sinos (nesse tempo os sinos ouviam-se até Tentúgal!) e de fogueiras acesas no topo.
A rendição do forte ocorreu no dia 27 de Junho de 1808, com Zagalo coroado de glória. As operações militares não terminaram com a conquista do Forte de Santa Catarina. O Batalhão Académico avançou para sul, tendo libertado Soure, Condeixa, Pombal, Leiria e Nazaré.
Entretanto, a frota comandada pelo Duque de Wellington (Arthur Wellesley, 1764-1852) levantara ferro de Inglaterra a 09 de Julho. O desembarque das tropas britânicas ocorreu no Cabo Mondego entre 01 e 05 de Agosto de 1808. Ao receberem a notícia, os elementos mais destacados do Batalhão Académico avançaram da região de Leiria para a Figueira da Foz, juntando-se assim às tropas de Wellington.
Bernardo António Pereira Zagalo, natural de Ovar, aluno de matemática na UC e militar, nasceu em 1780 e faleceu no ano de 1841. Em relação ao primeiro momento da história protagonizada por Zagalo, os estudantes iniciam a revolta ainda de Capa e Batina (desenho de RTorres inspirado numa litografia de Macphail, existente na BGUC), rodeando Zagalo. A abordagem fisionómica de Zagado na tapeçaria é meramente virtual, não havendo notícias de qualquer retrato conhecido daquele académico.
Aqui ocorre o primeiro erro de palmatória. Procurando conferir destaque a Zagalo, Renato Torres veste-lhe um uniforme errado (erros grosseiros na faixa peitoral e nas calças brancas). Não há elemento algum que nos diga que Zagalo não estaria de Capa e Batina no momento da insurreição. Depois, decidido organizar o Batalhão Académico no dia 23/06/1808, e constatada a impropriedade da Capa e Batina para acções de combate, logo o estudantes decidiram adoptar um uniforme integralmente preto: calça preta de alçapão com botas, polainas e espada; casaca militar de abas, em preto, com vivos a azul claro, cabeção e canhões a carmezim; barretina de sola, com duas borlas de franja prateada, penacho carmezim, uma chapa metálica com os dizeres "Voluntário académico", e uma fita amarela onde se lia "Vencer ou morrer por D. João VI." Os oficiais, e Zagalo era oficial, não podiam trazer quaisquer bandas, devendo aplicar no ombro direito uma dragona de canotão dourado. O correame era todo em amarelo.
Resta saber se houve tempo para ter prontos estes uniformes de 23 para 25 de Junho. O mais certo é o destacamento comandado por Zagalo ter avançado em trajos civis de Coimbra para a Figueira. Parece que só após a conquista do Forte de Santa Catarina, e com os estudantes que estavam de férias a correrem em força para a Universidade com vista a alistarem-se no Corpo Voluntário Académico, é que foi decidido e definido o modelo de uniforme militar a usar pelo Batalhão Académico.
O segundo núcleo fixado por Renato Torres confere destaque às gentes humildes de Montemor que participaram vitoriosamente na luta. Como cenário, o pintor escolheu a Torre da UC e a Sé Velha. A Sé Velha, além de desnecessária, contém anacronismos na escadaria nobre e na omissão do Arco da Imprensa da Universidade. Em seu lugar deveria figurar o Laboratório Químico da UC onde se fabricaram intensamente munições. A Torre da UC é elemento correcto, pois serviu para troca de mensagens entre Coimbra e os corpos miliares em marcha.
Um terceiro nucleo distinguido por Renato Torres valoriza a praia de Buarcos, o Forte de Santa Catarina e a recepção à esquadra naval britânica. Relativamente a este terceiro momento da história fixada pelo pintor parece haver falta de congruência entre o extenso título da tapeçaria, a expulsão das tropas francesas que se encontravam no Forte de Santa Catarina e o desembarque comandado por Wellington.
A narrativa plástica sugere que uma vez tomado o forte, Zagalo entrou em comunicação com a esquadra britânica e ajudou a preparar o respectivo desembarque no Cabo Mondego. A História diz-nos que a esquadra parou no Porto e só após conversações com as forças amotinadas contra Junot no Porto é que ficou decidido efectuar o desembarque no Cabo Mondego. A esquadra aproximou-se da Figueira da Foz no dia um de Agosto, estando o Batalhão Académico em operações entre Pombal e Leiria. Só no dia 5 de Agosto, de tarde, é que o Batalhão Académico soube em Leiria que o desembarque no Cabo Mondego estava a decorrer com sucesso.
Procurando concentrar num mesmo espaço e num momento único apreensível pelo olhar acções distintas em termos de espaços e de sequências temporais, Renato Torres apresenta vulnerabilidades iconográficas e de articulação espácio-temporal que o aproximam dos "cortejos históricos" fantasiados nas décadas de 1930-1940 por Leitão de Barros.
Como condensar com sucesso no mesmo espaço pictórico os seguintes acontecimentos?
-Coimbra, 23/06/1808: insurreição contra a ocupação napoleónica;
-Coimbra e Montemor, 25/06/1808: incursão militar em direcção à Figueira da Foz e recrutamento de forças camponesas;
-Figueira da Foz, 27/06/1808, conquista do Forte de Santa Catarina e expulsão do contingente francês;
-Cabo Mondego, 01 a 05/08/1808, desembarque das forças britânicas e formação inicial do exército anglo-luso.
O desejo de credibilizar o virtual heróico sobrepõe-se às insuficiências investigativas do real manipulado pelo Estado Novo. Alguns historiadores mais sensíveis ao campo da produção artística já realçaram evidentes paralelos entre a manipulação da História pelos cineastas de Hollywood e a manipulação da História pelos artistas plásticos que produziram encomendas para os regimes autoritários europeus. A ideologia é diferente, mas os objectivos da encenação que presidem ao sacrifício do real pelo virtual apresentam pontos de convergência.
Em suma, ou bem que que o pintor Renato Torres falsificou deliberadamente os acontecimentos de 1808, ou bem que o encomendador da obra não fez o trabalho de casa, ou fê-lo com menor escrúpulo.
AMNunes

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