segunda-feira, setembro 11, 2006

ESTÓRIAS À LENTE (5)

XIII.

Na UC, entre 1948 [1] e 1967, foi a cadeira de Psiquiatria da licenciatura em Medicina regida por um lente ainda hoje recordado, entre antigos estudantes e nos meios médicos, pela alcunha que o celebrizou; não a vou aqui reproduzir, mas deixo expresso que ela quereria significar que, psiquiatricamente, o dito lente deveria ser o objecto e não o sujeito… E por boas razões. Tenho utilizado às vezes, nestas estórias, a expressão «sábio distraído». E o Doutor J… também seria um pouco o caso; só que com alguma afectação pelo meio; e o episódio que vou narrar bem o ilustra…

O Doutor J… almoçava frequentemente na Central, clássica pastelaria da Baixa coimbrã, em pleno «Canal»; à hora do almoço a Casa servia também refeições; e era chefe-de-sala outra celebridade dos anos 40-50: o Sr. Petrónio (ainda o lá conheci, na segunda das décadas mencionadas). Ao chegar à Central, o Doutor J… procurava mesa, sentava-se e punha-se «a olhar para ontem»; até chegar o Sr. Petrónio; aí ‘voltava à Terra’ e dirigia-se ao chef:

- Ó Petrónio, eu já almocei ?
- Ainda não, Sr. Doutor.
- Então traga-me a ementa.

Seguia-se o repasto; raramente o Doutor J… terá tido companhia. Após o café punha-se de novo «a olhar para ontem»; até voltar o Sr. Petrónio; e aí tínhamos nova pergunta e sequência:

- Ó Petrónio, eu já almocei ?
- Já sim, Sr. Doutor.
- Então traga-me a conta.

XIV.

- Isto foi aula de quê ?

Que um lente possa perguntar tal coisa no termo de uma aula parecer-nos-á certamente coisa surrealista ! Mas o facto é que já aconteceu…
Foi anteriormente referido neste blog que pelas décadas centrais do século que passou os lentes de História da FL/UC eram escassos; foi bem verdade; consequência inevitável: uma acentuada sobrecarga de serviço docente para todos eles. É claro que durante bastante tempo isso acabou por os beneficiar, já que qualquer regência seria remunerada com uma «gratificação»; mas num dado momento da década de 50 as gratificações passaram a limitar-se a duas regências; as remanescentes – uma só, em princípio – seriam dadas gratuitamente… É claro que a partir de então a Escola passou a recrutar assistentes com mais regularidade e a incentivar os doutoramentos…
Mas não nos antecipemos.
Antes da mutação referida, o Doutor B… foi certamente um dos Mestres mais sacrificados, forçado a reger matérias que podiam ir da História de Roma à História Medieval (portuguesa ou europeia), da Paleografia à Epigrafia, da Numismática à História dos Descobrimentos… Acresce que se tratava de um dos mais prolíficos historiadores da Escola de Coimbra de então, que entre 1945 e 1954 andou assoberbado com a reedição anotada de um clássico da nossa Historiografia, que produziu – com intuitos didácticos – o primeiro álbum de Paleografia que entre nós se publicou, que procurou – e conseguiu – dotar o então «Instituto de Estudos Históricos Dr. António de Vasconcelos» [2] com um notável conjunto de reproduções de documentos medievais (em fotografia ou microfilme) [3] e que frequentava assiduamente reuniões científicas, no País ou fora dele; era, aliás, o mais internacional dos sacerdotes de Clio exercendo então em Coimbra.
A juntar a todo isto, o Doutor B… tinha o hábito de trabalhar de noite, dormindo escassas horas e não raro fazendo directas. Mas não era isso que o impedia de estar bem cedo na Faculdade, a fim de passar pelo dito Instituto – à cata de novidades bibliográficas – antes da primeira aula. E não raro era qualquer texto rapimente percorrido, num livro ou revista recém-chegado(a), a motivar a sua exposição, que, assim sendo, só por acaso algo poderia ter a ver com a temática da cadeira e com o ponto do programa a ser supostamente abordado. Só que o Doutor B… era distraído, sim, mas até certo ponto; e se no final da aula procedia à interrogação reproduzida a abrir a presente narrativa, a resposta imediatamente lhe permitia situar-se; e depois era só ir à Secretaria preencher a caderneta de Sumários da cadeira certa, com a indicação da matéria prevista para aquela data concreta…
Independentemente destas peculiaridades, o Doutor B…, jubilado há mais de 30 anos e desaparecido há 18, foi indiscutivelmente um grande Mestre e como tal é ainda lembrado pelos seus antigos alunos e assistentes; e daí a digna evocação de que foi alvo, ao passar, há poucos anos, o centenário do seu nascimento.

XV.

O Doutor D… foi um dos assistentes de História recrutados pela FL/UC nos alvores da década de 50. Contando já 30 e muitos anos, doutorar-se-ia nos finais da década e atingiria a cátedra uma dúzia de anos mais tarde; jubilado em meados da década de 80, morreria dez anos depois; já jubilado, foi, em Dezembro de 1985, arguente do trabalho complementar nas minhas provas de doutoramento.
Enquanto assistente, o Doutor D… trabalhou mais regularmente na dependência do Doutor P…, uma celebridade da Casa e da Historiografia portuguesa, expositor brilhante, senhor de obra vasta e diversificada, mas longe de constituir um Mestre assíduo e interessado no quotidiano da Escola, sempre disperso que andava por outras actividades em Lisboa e no Porto; donde, a intensidade com que viajava e a alcunha que se lhe colou num dado momento: não a vou reproduzir, mas direi que tinha a ver com a sua assídua relação com o caminho-de-ferro [4]
No dia da posse como assistente, o Doutor D… deslocou-se, no termo da mesma, da Reitoria para a sua Faculdade (o actual edifício fora recentemente inaugurado), como que a «apresentar-se ao serviço». E logo encontrou o Mestre de quem iria directamente depender, dando-lhe conta da posse e de que ali estava…

- Calha bem – diz o Doutor P…– porque mais logo tenho aí três alunos militares[5] a fazer exame de Numismática e não posso efectuar a vigilância. Você é que lá podia ir e assim se estreava no serviço…
- Muito bem – redarguiu o Doutor D… –, só preciso que o Sr. Doutor me dê o enunciado da prova.
- Não é preciso ! – tornou o Doutor P… – Você vai à caderneta de Sumários e elabora um enunciado, ao seu critério.
- Se o Sr. Doutor assim acha…

E lá foi o Doutor D… Obtida a caderneta, elaborou um enunciado – procurando cobrir diversificados pontos do programa – e à hora prevista estava na sala, perante os três examinandos. Ditou as perguntas e notou logo uma expressão estupefacta nos circunstantes. Um deles, pedindo licença, disse o seguinte:

- Ó Sr. Dr., mas nós não demos nada disso !
- Não deram nada disto ?! Mas está tudo nos Sumários !...
- Está bem, Sr. Dr., mas nós só demos o asse romano [6]
- O asse romano ?!
- Sim, Sr. Dr. – tornou o aluno, corroborado agora pelos dois restantes –, é só isso que sabemos, é isso que costuma sair e é a isso que vamos responder.
- Façam lá o que os Srs. quiserem !

À mente do Doutor D… chegou a acudir que poderia estar a ser objecto de alguma partida, qual «tourada ao lente» avant-le-temps… Mas não era: quando, decorridas as duas horas, recolheu os pontos logo se deu conta de que todos afinavam pelo mesmo diapasão – o dito asse romano.
Pouco satisfeito, foi em busca do Doutor P… Este estava a conversar com o bedel; vendo o seu novo Colega, logo o interpelou:

- Então como é que se saiu com a vigilância ?
- Ó Sr. Doutor, nem queira saber o que me aconteceu !
- Então o que foi ?

E o Doutor D… lá contou quanto se passara. Quando acabou de falar, o Doutor P… voltou-se para o bedel e comentou, algo maliciosamente:

- Este ainda tem que aprender…

E depois, falando para o Doutor D…:

- Ó Senhor, dê-se nessa cadeira o que se der, pergunte-se o que se perguntar, eles vêm sempre com isso ! E nunca levam menos de 13 !!!...

XVI.

Aqui há uns 50/60 anos houve na UL um lente de Filologia Germânica muito singular; ficou nomeadamente célebre o seu hábito de, nas orais de Língua Alemã, pedir às alunas – e só a elas… – a tradução para Alemão das peças do vestuário interior feminino ! Mas um dia foi mais longe…
Havia uma aluna voluntária [7] residente no Porto. Apesar da distância, Lisboa era-lhe mais vantajosa que Coimbra, por existência de apoios familiares. Foi admitida à oral de Língua Alemã com nota fraca. E o Doutor J… começou por lhe fazer a análise da prova escrita e das suas deficiências. A aluna reconheceu que a escrita lhe tinha corrido mal, que só podia alegar o facto de viver no Porto e de viajar até Lisboa quando podia, para assistir a algumas aulas e apresentar-se a frequências e exames; mas era duro: em certas fases do ano sentia que passava o tempo nos comboios e que estava sempre com um-pé-lá-outro-cá

- Quem me dera estar no Entroncamento ! – disse logo o Doutor J…

XVII.

Um dia teria de contar alguma passada comigo…
A cena ocorre em 1983, era eu ainda assistente. De longa data (1957 ss.) existia na licenciatura em História uma disciplina anual de Pré-História; mas na variante em Arqueologia (1981 ss.) a disciplina equivalente intitulava-se Origens do Homem e da Civilização.
Aí por Fevereiro / Março de 1983 estava eu um dia a dar aula de História Institucional e Política (séculos III-XIV), cadeira que regi de 1978 a 1988 quase sem soluções de continuidade; nesse dia, já não sei por que razão, houve uma troca de salas, passando eu com os meus alunos para uma sala normalmente ocupada por turmas de Arqueologia. Passados cerca de 15 minutos sobre o início da aula abre-se a porta e entra, esbaforida, uma aluna que, claramente, não era dali. Surpreendida com a diferente paisagem humana, vira-se para mim e interroga:

- Desculpe, aqui não é as Origens do Homem ?

Resposta minha:

- Não, não, Minha Senhora, eu já estou na casa dos 30 !...

XVIII.

E aqui vai outra da minha lavra… Esta passa-se em Junho de 1986, na vigilância de um teste da cadeira mencionada na estória anterior. Estava eu doutorado há meses e acompanhava-me na dita vigilância o meu Colega Doutor José Augusto Sottomayor Pizarro, ao tempo assistente. Como a maioria dos leitores por certo terá ideia, as provas escritas realizavam-se – e realizam-se – em folhas pautadas e timbradas duplas, isto é, com um total de 4 páginas. O teste tinha a duração de duas horas. Estar-se-ia sensivelmente a meio quando uma aluna, tendo terminado o tema de desenvolvimento – ou seja, estando também mais ou menos a meio do teste – e tendo utilizado até então a quase totalidade da folha dupla que lhe fora distribuída, aproveita para se levantar e deslocar-se até à secretária, onde eu me encontrava com o referido Colega; dirigindo-se a mim, pede, com toda a explicitude:

- O Sr. Dr. dá-me licença de ir ao quarto de banho ?
- Com certeza, Minha Senhora ! – respondi.

Passados alguns minutos a aluna regressa, dirige-se novamente à secretária e assim se exprime:
- Sr. Dr., pode-me arranjar mais papel ?...

XIX.

Como não há duas sem três…
In illo tempore, quando eu ingressei na licenciatura em História da FL/UP (1968), duas figuras pontificavam no pessoal técnico, administrativo e auxiliar da Casa: o Sr. Pinto e o Sr. Ferreira. Formando uma dupla eficaz, não podiam ser mais diferentes:

§ O Sr. Pinto, sempre sério e compenetrado no trabalho; só tendia a descontrair um pouco nos almoços de confraternização de professores e estudantes, para que o dito pessoal técnico era normalmente convidado;

§ o Sr. Ferreira, ainda que às vezes com a sua pontazinha de mau-génio [8], tinha outro sentido de humor e gostava de contar – ou de ouvir contar – uma boa anedota; e, sobretudo, estava sempre pronto a deixar-se convidar para uma bebida – cerveja, normalmente, mas não só, como veremos.

A cena passa-se numa cálida tarde de Julho de 1973. No anfiteatro do piso 3 [9], Luís Adão da Fonseca [10], ao tempo assistente, efectuava provas orais de História da Idade Média; com ele formava júri Aurélio de Oliveira [11], também assistente; no extremo da vasta mesa, eu próprio, monitor há poucos meses, ia ajudando Aurélio de Oliveira no preenchimento de pautas e termos da ultra-populosa turma de Germânicas da disciplina anual de História de Portugal.
A dado momento entra o Sr. Ferreira (julgo que ia tirar medidas a um estore que necessitava de substituição). E logo Adão da Fonseca se lhe dirige:

- Sr. Ferreira, estou cheio de sede; arranje-me um refresco…
- Um Sumolzinho, Sr. Dr. ?
- Está bem, traga lá – diz Adão da Fonseca, puxando pelo porta-moedas.
- Mas então têm que ser dois…
- Dois ?! Porquê ?
- Porque eu também estou com sede !...

XX.

Tem andado amiúde na Ordem do Dia a questão do papel das Ciências da Educação na formação graduada – actual licenciatura – dos profissionais da História (e/ou de outras Ciências Sociais e Humanas com saída para o Ensino). O problema não é de hoje, pese embora um certo enragement de lobbies nos últimos 10 anos. Mas na década de 80 a questão já se punha, e foi em boa parte o problema da criação do Ramo Educacional a determinar os desastrados rumos das reformas curriculares da licenciatura em História ocorridas no final da dita década. Com um pormenor: a excelente reforma Sottomayor Cardia das Faculdades de Letras (1977), então enjeitada, vigorara cerca de 10 anos; os produtos da «contra-revolução curricular» dos anos 80 vigoraram entre 12 e 15 (havendo ainda um caso de manutenção até ao presente, que só BOLONHA fará sair de cena…) !

Sempre estimulei os alunos a intervir nas aulas, durante (ou após) as exposições teóricas ou então apresentando pequenos trabalhos (relatórios de leitura, comentários de fontes, etc.) nas aulas práticas. E quando alguns me contrapunham – hoje já será menos frequente – a falta de experiência quanto a falar em público, eu sempre trepliquei com a ideia de que se algo correr menos bem é perante Colegas, e que haverá que ir ganhando traquejo se for efectivamente o Ensino a estar no horizonte…
Em 1984/85 tive duas excelentes turmas de História Institucional e Política (séculos XIII-XIV), que plenamente corresponderam aos meus mencionados incentivos [12]. Mas houve numa dessas turmas alguém que me pretendeu dar água pela barba: era uma já algo veterana professora da Instrução Primária [13], frequentemente apregoante aos quatro ventos dos seus mais de 20 anos de experiência docente... Para além de por vezes criticar intervenções de Colegas de forma bem pouco elegante, um dia resolveu ir mais longe, ‘teorizando’ que deveria haver uma cadeira de Pedagogia em cada ano da licenciatura, pois de outro modo saíam da Faculdade licenciados «com um amontoado de conhecimentos científicos» e com nulos conhecimentos pedagógicos e que um licenciado sem conhecimentos pedagógicos era «como um manequim despido» !

- Um manequim despido ? – redargui eu – E a Senhora acha isso uma coisa assim tão horrorosa ?!

A turma riu. E a experiente pedagoga não voltou a intervir sobre tais matérias…

XXI.

É curioso que, sendo eu natural de Coimbra (freguesia de Santa Cruz), filho de dois diplomados pela UC, tendo tido praticamente desde sempre familiares na Cidade e nela tendo passado, na infância e na adolescência, inúmeros períodos de férias, quase nunca lá residi em permanência. O «quase» tem a ver com o ano isolado em que frequentei a FD/UC.
Foi em 1967/68. Se desde os anos centrais do Curso Liceal a História se revelara a opção, deixara-me depois convencer pelos argumentos de Familiares, Mestres, Colegas e Amigos: a bem das já então faladas saídas profissionais… É claro que ao fim de poucos meses eu já decidira corrigir a rota, e em 1968/69 estava de regresso ao Porto – onde fizera todo o Liceu – para frequentar a FL/UP.
Mas não considero esse ano em Coimbra tempo perdido. Por muitas razões: uma das quais a possibilidade de também ter presenciado episódios transformáveis em estórias; como esta que passo a narrar…

Entre o Carnaval e a Páscoa – julgo que no mês de Março – iniciou funções um novo assistente numa das quatro cadeiras que então compunham o 1.º ano de Direito. Dizia o Mestre, o Doutor C…, ao apresentá-lo que doravante, nas aulas práticas, haveria duas pessoas; de modo que:

- … umas vezes virá o Sr. Dr. A…, outras vezes virei eu, outras viremos os dois… e outras não virá nenhum…, porque lá por sermos agora dois os Srs. não perdem o direito a ter, de quando em quando, o seu «feriado»…

O novo assistente era um jovem recém-licenciado, rosto escanhoado – contrariamente a tempos ulteriores –, ar de rapazinho bom comportado (donde, a ocasional alcunha de «copinho-de-leite»…) e com uma indisfarçável falta de à-vontade nas primeiras aulas. Veio a ser figura de renome nas áreas a que se consagrou; e é hoje lente de uma outra Universidade que não a de Coimbra.
Não havia nesse tempo fichas timbradas individuais que os lentes entregassem aos escolares para preencher, colar fotografia e devolver. Na Secretaria haveria por certo a ficha individual do aluno, onde seriam lançadas as matrículas e as classificações. Mas essas, normalmente, só vinham à mão do lente aquando das provas orais. De modo que, pouco depois da posse do assistente, o Mestre da cadeira pediu numa aula teórica que toda a gente pegasse numa folha «de caderno de argolas», como então se dizia – folha de formato-verbete, pautada e duplamente furada –, e nela colasse uma fotografia e escrevesse os dados fundamentais da identificação, idade, naturalidade, profissão dos progenitores, local e Instituição onde se tivesse frequentado o Ensino Liceal, etc. E depois era só entregar ao Sr. Dr. A… numa das aulas práticas.
Numa das suas aulas seguintes o Dr. A… falou do assunto:

- Eu sei que o Sr. Doutor C… lhes solicitou uma folha com estes- elementos-assim-assim; de modo que quem tiver isso pronto pode já entregar-mo no fim desta aula ou numa das próximas.

Chega o termo da aula. Seria lógico que o novel assistente se tivesse deixado ficar na secretária e aí aguardasse quantos tivessem o papel para entregar. Mas como, porventura, terá visto muitas cabeças a acenar afirmativamente quando falou do assunto, achou que, face a uma possível multidão de entregantes [14], seria melhor outra solução: e assim, ao dar a aula por terminada, dirigiu-se para a porta, que abriu, aí ficando para receber as ditas folhas. A dado momento a subsequente cena tornou-se perfeitamente ridícula: era como se um grupo de fiéis fosse saindo de uma missa e alguns dessem esmola ao pobrezinho colocado logo à saída… Disso se deu conta o veterano-mor da turma, um Colega já com a tropa feita e incontáveis matrículas (penso aliás que não andaria longe dos 30 anos); e resolveu agir em conformidade: ao aproximar-se da porta puxou do porta-moedas, olhou para o interior do mesmo e fez uma expressão desolada, logo dizendo ao Dr. A…:

- Não pode ser, santinho…

XXII.

- O Programa deste Governo tem coisas novas e coisas boas; só que as novas não são boas e as boas não são novas !

Estas palavras foram proferidas em Setembro de 1978. Local: a Assembleia da República; orador: o lente de Direito Doutor Diogo Pinto Freitas do Amaral, ao tempo líder do CDS; circunstância: o debate de investidura do III Governo Constitucional (GC), um Governo de iniciativa presidencial (general Ramalho Eanes) que teve como primeiro-ministro o Eng. Alfredo Jorge Nobre da Costa (1923-?); isto face a um quadro parlamentar difícil de gerar maiorias sólidas; a dissolução do Parlamento, na sua primeira legislatura na vigência da Constituição de 1976, seria para dar azo a eleições intercalares e não antecipadas, já que, constitucionalmente, a dita legislatura só terminaria em 1980. Falhada a experiência de Governo PS a solo (I GC, 1976-1978), falhada a coligação PS / CDS (II GC, 1978), o então PR ensaiou esta fórmula. Como muitos, por certo, recordarão, este Executivo não passou no Parlamento e esteve efemeramente em gestão até Novembro seguinte, altura em que tomou posse outro Governo da mesma iniciativa (IV GC, primeiro-ministro Doutor Carlos Alberto da Mota Pinto [1937-1985]), que estaria em funções até Agosto do ano seguinte. Depois viria mesmo a dissolução parlamentar, o Governo de Maria de Lurdes Pintasilgo [?-2004] (V GC), as eleições intercalares (Dez.79) e os Governos AD (VI-VII-VIII GGCC, 1980-1983).

Mas voltemos a 1978. Quando o Doutor Freitas do Amaral proferiu tais palavras no hemiciclo, logo surgiu um comentário na Comunicação Social escrita (creio que na secção «Gente» do Expresso), afirmando tratar-se de uma paráfrase do Doutor Marcello Caetano (1906-1980), Mestre do orador agora em causa, quando, nos anos 50, argumentara uma tese de doutoramento na sua Escola, a FD/UL; Marcello Caetano teria dito o seguinte, logo a iniciar a argumentação:

- O seu trabalho tem coisas novas e coisas boas; só que as novas não são boas e as boas não são novas !

A ‘intertextualidade’ era óbvia. Pude depois dar-me conta de que a estória, retransportada à colação pela paráfrase de Freitas do Amaral, era relativamente conhecida nalguns meios universitários de Lisboa.

Imagine-se agora a minha surpresa quando, em 1994, num livro colectivo sobre a evolução da tese de «doctorat» francesa [15], e mais concretamente num texto sobre a «thèse de lettres» nos sécs. XIX-XX, deparei com a mesmíssima frase em versão francesa, atribuída a um eminente diplomatista e lente da École Nationale des Chartes [16], Georges Tessier. Tive depois oportunidade de falar do assunto com universitários franceses, mormente com aquele que considero o meu Mestre no seio do medievismo de além-Pirenéus, Bernard Guenée [17], antigo aluno de Tessier. E os testemunhos são unânimes:

- Le très digne monsieur Tessier serait tout à fait incapable de dire ça pendant une soutenance de thèse !

Aqui fica pois um pequeno mistério: onde nasceu afinal a «boutade» ? e pela boca de quem ?
Qualquer informe vindo dos colaboradores do blog será, obviamente, muito bem-vindo !

XXIII.

O Doutor Raul Jorge Rodrigues Ventura (1917-1999) foi um insigne lente de Direito Romano da FD/UL. De uma exigência ética acima do comum, e por isso mesmo suscitadora da admiração de quantos o conheceram, estava no entanto longe de ser pessoa austera e carrancuda. Pelo contrário, o seu fino humor – aliado ao muito saber – fazia do Doutor Ventura alguém não necessariamente temido, mas muito, muito respeitado. Ao que parece, nenhum aluno da post-graduação (o então 6.º ano jurídico) tomava a decisão sobre o tema da tese a coroar tal grau sem lhe ouvir o parecer; outros lentes, até mais antigos (v.g. o eminente civilista Doutor Manuel Duarte Gomes da Silva [1915-1995]), não deixavam de se assegurar de que os post-graduandos já tinham ouvido a opinião daquele muito especial Mestre.

Vamos então a uma primeira amostra do «modus agendi» do Doutor Raul Ventura. Nos anos 60 havia ainda nas Faculdades de Direito o hábito das chamadas nas aulas práticas. A estória passa-se ao ser chamado alguém que depois ficou bem conhecido pela sua intervenção cívica na fase inicial do governo do Doutor Marcello Caetano. Não era aluno assíduo às aulas nem particularmente estudioso ao longo da totalidade do ano. Chamado um dia em aula prática de Direito Romano, saiu-se com um estenderete de todo o tamanho. E o Doutor Ventura, como que prenunciando-lhe uma reprovação, comentou no fim:

- Senhor Fulano, não sei como hei de passar para o ano sem o senhor...
- Senhor Prof. Raúl Ventura, não sei como hei de passar este ano com o Senhor !... – retorquiu prontamente o aluno.

XXIV.

Noutra ocasião, foi o Doutor Raul Ventura abordado por um aluno que, por qualquer razão, terá querido ensaiar alguma especial aproximação àquele Mestre. E de que modo ? Dizendo-lhe que estava em situação de apuro, já que precisava de comprar uma botas de montar a cavalo e não dispunha da quantia necessária, cinco mil escudos (só e mais nada !!!), e se por acaso ele, Doutor Ventura, poderia emprestar-lhe a dita quantia… Longe de se enfurecer, o Doutor Ventura foi calmamente dizendo «não ser de habitual nas relações entre professor e aluno tal tipo de solicitação. Fosse como fosse não tinha consigo essa importância, dispondo apenas no momento de mil escudos…»:

- Pois também me servem, Senhor Professor. Também me servem… – disse logo o aluno.

«Servindo-lhe ou não, o facto é que se não eximiu a um remoque cronicamente vitorioso por parte de Raul Ventura».

Obs.: A fonte desta estória e da anterior é o texto de Ruy de ALBUQUERQUE, «Evocação de Raul Ventura», Revista da Faculdade de Direito [UL], XLI / 1 (2000), pp. 345-363, de onde se transcrevem (p. 361) as passagens entre aspas e os discursos directos.

XXV.

Houve na FL/UP, dos anos 60 do século findo aos anos zero do novo século, um lente de História Moderna que não tinha problema algum em se afirmar como conservador. Atribuíam-se-lhe, proferidas em aulas, frases como esta:

- O historiador Fulano, que é marxista mas é inteligente…

A sua estória mais patusca tem a ver com um cão sem dono que ‘frequentava’ a Faculdade. Estava-se no final da década de 70. A FL/UP instalara-se em 1977 num precário edifício nas traseiras do Palacete Burmester, à Rua do Campo Alegre, situação ‘provisória’ [18] que se prolongou até 1995… E aí por -79 apareceu lá um cão abandonado; era bonito (chamavam-lhe «Branquinho», em função da cor) e dado às pessoas; tornou-se popular, tanto que no bar lá o iam alimentando; mesmo sem dono, o cão adquiriu casa e por ali andou um bom par de anos. Nos dias de sol gostava o «Branquinho» de ir para o anfiteatro pequeno e deitar-se a ferrar a sua soneca; dormindo ou apenas cochilando, esteve em muitas aulas de muitas cadeiras.
Num dia soalheiro o dito lente preparava-se para, às 11 h. da manhã, principiar uma aula. Começou assim:

- Hoje vamos iniciar um novo tema, vamos começar a tratar de revoltas e levantamentos populares na Europa do século XVII.

Abre-se então a porta, deixando entrar um pequeno grupo de alunos que se atrasara… e com eles o «Branquinho», buscando o lugar favorito para a soneca da manhã… Comentário do lente:

- Pois é, fala-se de revoltas e aparece logo um camarada !...

XXVI.

Na Faculdade de Ciências / UP, grupo de Geologia, houve um lente (ainda vivo, mas jubilado há pouco mais de 15 anos) que também deixou memória de estórias interessantes [19]. Era pessoa temperamental, muito sapiente e muito exigente, particularmente num Curso semestral de Mineralogia e Geologia, ministrado logo no 1.º ano / 1.º semestre de Engenharia Química. Portista ferrenho, derrota do F. C. Porto era o suficiente para desencadear tempestade no dia seguinte. Mas não era das feras-mais-feras da FC/UP, e quando bem disposto era capaz de derivar nas aulas para memórias pessoais.
Ficou célebre a estória que passo a contar. Dizia ele:

- Quando eu tinha a vossa idade fui pedir namoro à Colega de Curso mais gira; recebi um não. Despeitado, fui pedir namoro à Colega mais feia; recebi um sim; é hoje a minha Mulher…

XXVII.

Referido na estória XXIII., o Doutor Manuel Duarte Gomes da Silva [1915-1995]) é tido como um dos cérebros mais poderosos e brilhantes da FD/UL ao longo do século que passou, maugrado as suas limitações: desde muito jovem com problemas de visão, acabou por cegar completamente pouco depois de atingir a cátedra (meados da década de 40). Mas uma invulgar força interior e o apoio constante de familiares permitiram-lhe ensinar longamente, deixar Lições para praticamente todas as cadeiras que regeu (essencialmente no domínio do Direito Civil) e deixar ainda uma abundante produção no domínio da parecerística jurídica. Se a sua capacidade de comunicação era limitada perante um anfiteatro repleto, já nas cadeiras da post-graduação (o anteriormente referido 6.º ano jurídico, segundo a designação do tempo) e nas provas orais o diálogo com os alunos podia ser extremamente interessante e estimulante. E havia uma pergunta célebre que às vezes gostava de colocar nas ditas provas:

- Pode a Caixa Geral de Depósitos casar com o Banco de Portugal ?

Um non-sense, dir-se-á. Mas o diálogo a partir de tão insólita pergunta podia ser longo e funcionar propedeuticamente, no sentido do desenvolvimento da capacidade de argumentação dos alunos. «A cada justificação da impossibilidade da Caixa casar com o Banco, lá ia o Prof. Gomes da Silva objectando, apresentando argumentos invalidantes das justificações, socorrendo-se de analogias, comparações, enunciando premissas e consequências endoxais suficientes para arredar os motivos apresentados pelo examinando para se opor ao casamento da Caixa com o Banco. Por fim – lá casaram os dois, pois que remédio !».
Por tudo isto, quantos conheceram o Doutor Gomes da Silva lembram com saudade a Pessoa e os ensinamentos, decorridos que vão cerca de 11 anos sobre a sua morte.

Obs.: A fonte desta estória é o texto de Ruy de ALBUQUERQUE, «Prof. (O) Manuel Duarte Gomes da Silva: o Mestre e o Homem por detrás da obra», in Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Manuel Duarte Gomes da Silva, Lisboa / Coimbra, Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa / Coimbra Editora, 2001, pp. 5-252, de onde se transcrevem (p. 227) as passagens entre aspas e em discurso directo.

Armando Luís de Carvalho HOMEM

NOTAS:

[1] Ou seja, na sequência da jubilação do Doutor Elísio de Moura (1877-1977).
[2] Actual Instituto de História Económica e Social da FL/UC.
[3] Daí que muitos tenham podido elaborar as suas teses de licenciatura sem necessidade de deslocações sistemáticas, por exemplo, à Torre do Tombo.
[4] Testemunhos vários asseguram que o Doutor P… sabia de cor o horário dos comboios da Linha do Norte ! Mais: identificava-os pelo número de circulação ! Donde, o atribuirem-se-lhe frases como esta: – Meu Querido Amigo, gostaria imenso de continuar a conversar consigo mas não posso: vou agora viajar para o Porto no semidirecto n.º tal…
[5] Não sei de quando data o regime de épocas especiais para estudantes a prestar serviço militar ou tendo-o prestado até há pouco. Sei que, por razões óbvias, tal regime se intensificou nos anos 60 e que, sobrevivendo ao 25 de Abril e à descolonização, se prolongou pelo menos até aos alvores da década de 80.
[6] Moeda romana, de cobre.
[7] Designação antepassada de «trabalhador(a)-estudante».
[8] Se havia algo que o punha a ferver era qualquer atraso na devolução de livros da Biblioteca requisitados para leitura domiciliária…
[9] Tudo isto se passava no antigo (até 1959) edifício de Medicina (ao Largo da Escola Médica, actual Largo Prof. Abel Salazar), sede da FL/UP de 1962 a 1977 e depois, e até hoje, sede do Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar (ICBAS).
[10] Lente de História Medieval recentemente aposentado.
[11] Lente de História Moderna em vias de aposentação.
[12] Tive nesse ano uma aluna hoje bem conhecida, Judite Fernanda de Jesus Rocha e Sousa, essa mesma, a Judite de Sousa, ao tempo a dar os primeiros passos nos programas matinais da RTP/Porto; licenciou-se ca. 1987. Também Fátima Campos Ferreira passou pelas minhas aulas (em 1978/79); licenciou-se em 1981.
[13] Não lhe chamo «professora primária» por razões óbvias…
[14] As aulas desta cadeira tinham lugar num dos anfiteatros maiores dos Gerais, concretamente o que tem janela para o pátio da Universidade.
[15] Éléments pour une histoire de la thèse, Paris, Diff. Klincksieck, 1993.
[16] Estabelecimento do Ensino Superior francês, sediado em Paris, que prepara os bibliotecários, arquivistas e documentalistas da Pátria do General Charles de Gaulle (1890-1970).
[17] N. 1927, membro do Institut de France (Académie des Inscriptions & Belles-Lettres), lente emérito da U. Paris I-Panthéon-Sorbonne, «maître de recherches honoraire» da École Pratique des Hautes Études (IVe section).
[18] O edifício destinava-se à Fac. Ciências, que nas imediações tinha já o Departamento de Botânica e o respectivo Jardim, bem como um Centro de Microscopia Electrónica. Mas em 1995 o edifício recebeu transitoriamente a jovem Fac. Direito e logo depois a Fac. Psicologia e de Ciências da Educação (saída às pressas da sua anterior sede – também provisória –, que ameaçava ruína). Direito passou para as novas instalações aí por 2002-2003; Psicologia há cerca de um ano; 30 anos depois de começar a ser utilizado, o edifício está em obras para finalmente ser entregue ao seu primitivo destinatário.
[19] Este lente fez parte da sua carreira na UC (anos 50), incluindo o doutoramento e o concurso para professor extraordinário.

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