sábado, outubro 21, 2006

A outra face do espelho

Câmbio de Letras
Por José Henrique Dias, Professor Universitário
Matinal e longa, a caminhada até ao liceu. Logo no início da rua Abílio Roque, caminhava-se uma boa centena de metros sem uma casa. Do lado direito de quem descia, os terrenos a que chamávamos de mata de cima, até ao fundo onde estava a casa das máquinas do hospital. Muros intervalados por matagal, com silvedos que abriam olhos de sangue nos descuidos das brincadeiras.
Do outro lado, uns muretes com grades baixas. Veio aquele dia em que apareceu a placa de azulejos, Rua Padre António Vieira, com o esclarecimento: Orador e diplomata do Sec. XVII. A partir de então, jamais falharíamos resposta sobre a actividade e época do notável prosador. As placas toponímicas deviam ser todas assim, identificar os celebrados.
Um dos nossos jogos favoritos era lançar pedras a ver quem chegava ao telhado de um casarão abandonado, lá no fundo, sobranceiro ao Mercado D. Pedro V, onde muitos anos mais tarde se instalou a hemeroteca e onde se chega por elevador. Fora dos jesuítas, dizia-se.
Músculos em crescimento, poucos venciam a distância e se deleitavam com o estralejar das pedras nas telhas do velho casarão.
Ao longo da rua encurvada, poucas eram as casas, até chegar lá abaixo, ao topo da Avenida Sá da Bandeira, logo à Praça da República e Rua Oliveira Matos, onde estava o Ninho dos Pequenitos com freiras de chapeleta bizarra, branca como a farda e o verniz do rosto. Que atormentávamos entalando pedras que colavam os botões das campainhas. Santas mulheres, que aguentavam sem palavrão audível as nossas tropelias, modesto contributo para ganharem o céu a que hipotecaram o riso, o viço e o serviço.
Deixaram aquela boa área onde muitos anos depois se ergueram as instalações da Associação Académica.
Todos os dias, em tempo de aulas, lá íamos dois ou três das vizinhanças da Couraça dos Apóstolos, minutos marcados e aceleração do passo, enfrentando as ruelas da Sereia, à espera de horas mais livres para a caça à passarada, com fisgas de elásticos no i grego de ramo de figueira (os melhores eram de buxo) e pedra entalada no rectângulo de cabedal. Não havia caçador como o Eugénio. Nas fisgas e a driblar com o pé esquerdo.
Estava por riscar aquela escadaria que liga a Rua Lourenço Almeida Azevedo à alameda do liceu. Era um declive de árvores e lamas, com pequenos espaços que davam para uma jogatana de futebol.
Campo que se visse era o das oliveiras, na Avenida Afonso Henriques, longe ainda das construções que se alinham de um e outro lado.
Se havia um feriado, como dizíamos quando um professor faltava, ou gazeta combinada, corríamos para o campo das oliveiras, mal alinhavado nos seus altos e baixos, duas pedras de baliza em cada lado, e a guarda-redes os que menos se ajeitavam com a bola. O Louzã era tão hábil a falhar remates como a alinhavar rimas. Também D. Dinis fora hábil nos versos e nos bastardos. Ai flores, ai flores do verde pino. Contavam-se os minutos, incluindo o tempo de intervalo, para chegarmos afogueados à aula seguinte.
O D. João III tinha excelentes professores. Um destes dias hei-de tratar disso. Que então, aprendia-se Português no convívio de selectas de autores e na leitura integral de algumas obras, não se havia ainda inventado o comércio dos resumos e do como ler sebenteiro que por aí circula como complemento da indigência cultural e atestado da charneca intelectual em que o país amadurece.
À porta do liceu singrava pequeno comércio ambulante. Um homenzarrão trazia numa seira pevides, sementes de abóbora torradas e crepitantes de sal, cativando com o seu pregão olha a bela p’ide suiça. Soava a transgressão. Soava bem. A troco de uns tostões, enchia uma pequena barrica que fora de ovos moles, das que se vendiam nas estações à chegada dos comboios. Arrufadas de Coimbra e barricas de ovos moles, apregoavam mulheres de blusas de chitas garridas, saias rodadas a roçarem os artelhos.
O culto da pevide é ancestral do roer pipocas, actual tormento da ida ao cinema, com sustenidos de toques e solfejos ao telemóvel.
Mas encantadora era a Senhora Maria, que atravessara gerações com o seu tabuleiro de docinhos, os apetecíveis bananis, cones de ponto de açúcar com sabores a groselha ou mel, embrulhados em papel vegetal, com um palito no rabo a funcionar de pega da lenta degustação.
De todos os doces, os mais procurados eram uns biscoitinhos em forma de letras maiúsculas. Superada a atracção pela letra do nome, narcísica procura só superada pela escrita na borda do prato, quando as mães propunham a sopinha de letras, a tendência era escolher os bolinhos maiores, condizentes com o desenho da letra.
Iam-se afastando os inconvenientes e a preferência ia naturalmente para o eme e o ene, que então eram mê e nê.
A Senhora Maria não se conformava. Em jeito de ralhete, sentenciava:-Só querendes os mêses e os nêses? Também haveis de levar os ises.
Quem é que queria o lingrinhas do I, que nem pinta tinha? Ou mesmo o Lê magricela, apesar de mais uma perninha? Nem o Ismael se tentava, nem o Luciano fazia jus ao patronímico. Tudo era Manel ou Nicolau, argumentava-se para a boa Senhora.
Os bolitos amorenados, com um ligeiro gosto a canela, fazem crescer água na boca da memória.Senhora Maria: venham de lá os ises!
Artigo retirado do jornal Despertar.

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