quinta-feira, fevereiro 15, 2007

Lembrança de César das Neves (1841-1920)

César Augusto Pereira das Neves, filho de Joaquim Manuel das Neves e de Teófila Amália Pereira de Carvalho nasceu na cidade de Lisboa a 27 de Junho de 1841. Faleceu no Porto, no dia 18 de Novembro de 1920.
Filho de um gravador, CN cedo tomou contacto com as tipografias. Radicada a família Neves no Porto, o jovem CN começou a aprender a arte de tipógrafo em 1854. Nas horas vagas dedicava-se afincadamente à aprendizagem da música e do violino, frequentando na década de 1850 as lições do maestro Baldoni. Posteriormente aprofundou os conhecimentos musicais, composição, harmonia e contraponto com o maestro Giovanni Franchini. Muito influenciado pelo seu mestre, CN fundou em 1868 na cidade do Porto uma conceituada oficina de impressão de música, que com o tempo foi mudando de mãos e de nome. Mas a cidade do Porto continuava a ressentir-se da falta de modernos caracteres musicais, pelo que à roda de 1874 CN e Franchini importaram de Londres punções e com eles fundiram localmente as matrizes de que tinham necessidade. Com este novo material dirigiu e editou CN a publicação musical “A Grinalda de Euterpe” (10 números, 1874-1875).
Entre a 2ª metade da década de 1860 e a 1ª de setenta, Teófilo Braga deslocou-se ao Porto com alguma regularidade, seja para efeitos de recolhas etnográficas, seja para fins de reuniões de trabalho com amigos ou ainda para acompanhar a revisão de provas de trabalhos em vias de impressão. Numa dessas deslocações, CN foi apresentado a TB, que logo instigou o jovem músico a iniciar a edição exaustiva de um cancioneiro de melodias e danças populares e a efectuar as suas próprias recolhas. TB já tinha vindo a trabalhar intensamente o cancioneiro literário popular, mas não sabia música nem encontrara até ao momento colaborador capaz de satisfazer os seus reptos.
A cidade do Porto tinha alguma tradição na matéria, uma vez que o director do Teatro de São João, João António Ribas, recolhera e publicara na década de 1850 um modesto cancioneiro acompanhado de solfas harmonizadas para piano. E na passagem da década de 1870 para os anos 80, membros da família portuense Arroyo também se distinguiram no apego à recolha de musica popular e respectiva reutilização em contextos orfeónicos. Na estreia do Orfeon Académico de Coimbra, o regente e estudante de Direito João Arroyo regeu rapsódias por si harmonizadas sobre canções do Douro Litoral, Minho, Alentejo e Beira (Canção da Lousã, Toma Limão Verde, etc.). Seu irmão, António Arroyo, manteve-se sempre estritamente ligado aos meios musicais e foi um paladino da guerrilha antifadística, género musical que pretendia estirpar através da prática intensiva do folclore nas escolas e nos grupos corais.
A progressão dos sentimentos nacionalistas, em crescendo desde o Ultimato Britânico, suscitou interrogações em torno da possibilidade de uma arquitectura nacional/regional vernácula ou de uma pintura nacional. Aos arrufos da arquitectura internacional contrapunham-se as casas rurais provinciais portuguesas, vistas de forma idílica e descontextualizada. Às correntes pictóricas internacionais ou de índole progressista tentava responder-se com o naturalismo bucólico e posteriormente com os “Painéis de Nuno Gonçalves”. Aos surtos musicais internacionais e a manifestações suspeitas como o Fado acenava-se com as supostas potencialidades regeneradoras do folclore. A crescente consciencialização do eventual valor do folclore vinha a encontrar na Beira Litoral entusiastas como um Adelino das Neves e Melo ou um Pedro Fernandes Tomás, alinhados na construção de um movimento de não cessou de engrossar durante a 1ª República e os anos de afirmação do Estado Novo. O debate tecnicamente aprofundado teria de aguardar as reflexões publicadas após 1946 por Fernando Lopes Graça, quando em requentada reacção à folclorização estadonovista propôs uma campanha nacional de recolhas no terreno e chamou a atenção para o facto de muitas das danças e canções populares assentarem no esquema básico do Sol-e-Dó. Se prestarmos atenção ao contexto, o "Inquérito à Habitação Rural", promovido pela Universidade Técnica de Lisboa não está temporalmente desfazado em relação aos estudos de Lopes Graça sobre o uso da música popular nos ranchos folclóricos, orquestras ligeiras, corais, tunas e filarmónicas.
Valendo-se de amigos, de colaboradores e de deambulações a expensas próprias, CN iniciou as recolhas na década de 1870 mas nada conseguiu publicar antes do final da centúria. Em 1893 firmou sociedade com o poeta e jornalista Gualdino de Campos e com o comerciante e apaixonado folclorista Francisco Pinto Nogueira. Nogueira realizou também extensas recolhas em diversos pontos da Região Centro e Região Norte. Rapidamente foram prestando colaboração à equipa portuense padres, regentes de filarmónicas e até estudantes de Coimbra ligados à TAUC como o Dr. Manuel Maria Corte-Real.
Entre 1893-1895-1898 a sociedade “César, Campos & Companhia” conseguiu editar na Tipografia Ocidental três encorpados volumes de solfas, ultrapassando as 600 melodias. O cancioneiro dito de “César das Neves” congregou o que de mais importante se cantou em Portugal nos campos, nas igrejas, nas romarias, no trabalho, nos salões, nos palcos, nos terreiros onde a dança rompia, nas ruas. Deu notícia de processos de rápida circulação e recepção local de temas oriundos de determinados centros nos quais aparece referido por diversas vezes o distante Brasil. A territorialização ainda se não divisava no horizonte.
CN dominava uma multiplicidade de instrumentos de tecla, corda e sopro, tendo composto música para igrejas, corais, bandas e orquestras. Foi ainda professor particular de piano, violino, canto e harmonia, assinando muitas das letras que acompanhavam as melodias de sua lavra.
Eram tais a sua fama e competência que em 1880 foi convidado para reger a Aula de Música da Ordem Terceira do Carmo, cargo que desempenhou até falecer. Leccionou ainda Música na Ordem Terceira de São Francisco. CN dominava superiormente a Guitarra do Porto, sendo um executante de sala na tradição dos tocadores que vinham de António da Silva Leite. Para aquele instrumento, CN idealizou um notável manual, o muito raro “Methodo Elementar de Guitarra”, Porto, Casa Custódio Cardoso Pereira, Castanheira & Ca., ca. 1904. A parte didáctica deste método era completada com 13 trechos musicais eruditos (óperas) e de salão, sem a menor relação com o universo do Fado, revelando um tocador discretamente posicionado no rasto dos executantes setecentistas de Guitarra Inglesa que animavam cafés, casinos, termas, hotéis, salões, assembleias e bailes de máscaras.
De 1902 é um “Compendio de Musica. Solfejo e Canto Coral para alumnos de ambos os sexos” das escolas, liceus, seminários e colégios”, no qual CN propõe a execução de espécimes retirados do “seu” cancioneiro, apresentando in fine algumas peças de serenata ao gosto burguês da época.
Infelizmente não conhecemos nenhuma fotografia deste incansável e laborioso professor e recolector da música tradicional portuguesa que pode ser considerado com inteira propriedade um pioneiro “salvaguardador” do Património Espiritual Português. O mérito de CN não é em nada inferior ao de um António Augusto Gonçalves ou de um Martins Sarmento. Um trabalho diferente, contudo não menos meritório.
A Música Tradicional de Coimbra e a Canção de Coimbra devem-lhe seguramente alguma coisa.
(leitura de apoio: verbete da GEPB, 18, pp. 674-675)
António Manuel Nunes

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