quinta-feira, março 01, 2007

Somos nós os teus cantores

-O Zeca Morreu!
– Foram as palavras que meu pai, apoiado na janela, disse como num desabafo. Eu apenas sabia que o Zeca que só mais tarde se me mostrou José Afonso era uma voz saída do aparelho de música todos os sábados de manhã e um incómodo um quase descontentamento se me dava caso não a ouvia. No despontar de minha infância o Zeca era aquele cantor que fazia os olhos de meu pai olharem longe, alcançando horizontes que ainda não compreendia. Por isso aquela notícia se anunciou estranha, era como se por algum motivo o disco não mais fosse girar e aquela cantiga tão bela não mais soasse.
– Foi o nosso cantor!
– Foi a única frase soluçante que até hoje ouvi de meu pai, que laconicamente deslocou a agulha encontrando o disco em movimento. Maio maduro Maio quem te pintou, quem te quebrou o encanto nunca te amou … num gesto quase de imitação sentei-me à janela olhando o horizonte e imaginando que o Zeca era o meu cantor, que naquele momento apenas eu e meu pai o ouviam. O horizonte tão quotidiano como que se pintou e eu via lá longe uma falua que vinha lá de Istambul, e Maio para mim, que nem sabia de cor os meses do ano, passou a ser o melhor deles todos.
- Quem foi o Zeca pai?
– Meu pai reclinado na cadeira parecia já adivinhar a pergunta
- O Zeca foi o maior cantor e compositor português, foi poeta, usou a música como arma política, lutou contra o fascismo … foi o nosso cantor. Foi então que me lembrei das discussões dos domingos a noite em que eu deitado provocando o gato ouvia falar de uma tal Revolução, palavra da qual não sabia o significado mas achava bonita.
Cresci ouvindo Zeca, todos os dias primaveris, abrindo as janelas, punha o disco “Venham mais cinco” ou “Com as minhas tamanquinhas” continuando a achar que o Zeca era o meu cantor e em segredo ia apontando letras das quais palavras saltavam enigmáticas de minha imaginação. Um dia já mais velho passei numa loja e vi a um canto um CD com uma mão na capa; era do Zeca, comprei-o e trazia com um disco um livrinho que tinha fotos, fotos do Zeca. Um homem meio despenteado com olhos semi-cerrados por detrás de uns grandes óculos que a força da imaginação tentava endireitar. Durante muito anos rejeitei aquelas fotos; para mim aquela voz profunda e bela que ouvia nas canções não tinha um rosto próprio, talvez um vago perfil de um homem encostado à janela. José Afonso, para mim sempre Zeca, morreu há 20 anos, tempo em que deixou de ser apenas o meu cantor, passou a ser a voz de Abril, um cantor sem igual que nos brindou com a mestria de suas composições acompanhadas com a firmeza de seu carácter. Mais do que cantor, sua obra se transcende na mensagem de inconformismo caiada de rebeldia poética e concisa. Ainda hoje olho o horizonte que há 20 anos o Zeca transformou e sinto que não morreu, vive hoje e sempre na obra e em sua imagem inalterável. É tempo de se ouvir Zeca Afonso, ouvi-lo em casa, nas escolas e universidades, nas rádios e televisões, ouvi-lo sobretudo em nossa tão íntima realidade pois hoje somos nós os teus cantores!
Adriano Campos
Do Blog da AJA

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